Por
Natália Macedo Sanzovo
Parabenizo a minha amiga Natália Macedo Sanzovo, pela sua postura sempre corajosa e humanitária, diante da injustiça dos desvalidos. Ela diz que resolveu apenas um fato pontual.
Se cada
pessoa se importasse mais com a injustiça dos desvalidos (pobres e destituídos
de qualquer
poder) com certeza teríamos menos violência no mundo.
O objetivo desta roda
de diálogo, de um modo geral, era o de dar VOZ a esta população extremamente
vulnerável e, a partir de suas falas e reivindicações, pensar em políticas
públicas que pudessem atender as suas necessidades.
Nossa primeira
surpresa foi nos depararmos com a organização do evento; apesar de sabermos de
antemão (por meio do convite) que era uma atividade promovida pela própria
prefeitura, tínhamos a expectativa de que fosse uma “roda” pequena e simples,
mas nos deparamos com um palco, sistema de som com microfones, inúmeras cadeiras,
equipe de filmagem, toda a praça com pinturas feitas por moradores de rua,
cartazes e ampla participação.
Pois bem, enquanto
assistíamos atentamente o discurso do secretário de Direitos Humanos que, por
sinal, trouxe uma fala (aparentemente) muito verdadeira e cheia de vontade, nos
chamou a atenção uma escancarada cena de violação aos direitos humanos.
Logo atrás de nós, a
uns 4 metros, mais ou menos, um Senhorzinho, também em situação de rua (frágil,
cansado, perdido), que procurava entender o significado das palavras do “homem
de terno” e de todo aquele palco montado, foi abordado por policiais militares.
Ele se identificou
aos policiais, apresentou seu RG e, então, foi dado início a revista de seus
pertences. Ele portava apenas uma pequena sacola plástica. Dentro da misteriosa
sacola, os PMs (sim, eram mais de 2) “contra” aquele potencial agressor
encontraram “perigosas” mantas e casacos velhos e um “ofensivo” marmitex vazio.
Pronto, satisfeitos com a significativa “apreensão”? Não, não foi o bastante.
Percebemos, então, uma movimentação, a sacola sendo lacrada e o Senhorzinho
sendo conduzido pelos PMs até o Distrito Policial mais próximo.
Neste momento,
rapidamente abandonamos a roda de diálogo (evento promovido justamente para
suscitar e combater estas questões de atrocidades contra o ser humano) para
acompanhar ao vivo a afronta que estava acontecendo contra
aquele Senhorzinho em situação de rua (ou seja, estávamos diante de um
verdadeiro palco do contraditório).
Chegando no Distrito,
avistamos o Senhorzinho, que fora liberado, porém, sem a sua sacola. Ela fora
apreendida, lacrada e levada para o caminhão da Subprefeitura da Sé, juntamente
com tantas outras sacolas, esperanças, sonhos e pertences de outras pessoas,
também em situação de rua.
E o Senhorzinho?
Estava lá, ao lado do caminhão, segurando, agora, apenas o que lhe restou, um
protocolo com um número de lacre na mão, demonstrando sentir-se deslocado e
perdido.
Na ocasião, nos
aproximamos do Senhorzinho e perguntamos (mesmo já sabendo de tudo que tinha
acontecido), o que estava ocorrendo. A este momento já haviam se juntado a nós
outras pessoas, estudantes e um padre, também interessados em esclarecer a
situação. E então, resumidamente ele nos respondeu: “levaram minhas coisas,
tudo, não tinha nada de mais, só tinha umas blusas, uns casacos”.
Na verdade ele nem
imaginava a dimensão da atrocidade que tinha sofrido e a completa ilegalidade
da qual estava sendo vítima. Indignadas e convictas que estávamos diante de uma
situação totalmente injustificada, procuramos compreender a razão para tamanha
violação (como se houvesse alguma!) e, então, nos dirigimos aos PMs que estavam
presentes no local (não os responsáveis pela apreensão, pois não estavam lá) e
perguntamos se eles poderiam nos explicar porque aquele Senhorzinho teve sua
sacola apreendida. Qual a fundamentação?
A resposta foi
simples e genérica. Disseram que os PMs responsáveis pela apreensão estavam no
exercício de sua função, logo, é dever deles realizar as abordagens quando
suspeitam de alguma ilegalidade e completaram: “está na lei, Sra., tanto na
Constituição Federal, no parágrafo 5º do artigo 144, como no parágrafo 2º do
artigo 240 do Código de Processo Penal”.
Neste momento,
totalmente insatisfeitas com aquela resposta, mas sem muito tempo para discutir
sobre os limites do poder de polícia; o constrangimento acarretado ao
Senhorzinho e as demais ilegalidades escancaradas, perguntamos o crucial aos
PMs: Mas e a sacola, porque foi lacrada e apreendida? Não havia nenhuma
irregularidade com os pertences daquele Senhor, nós acompanhamos o momento que
ele foi revistado, só haviam casacos, blusas, mantas e um marmitex.
E, então, de maneira evasiva e esquivando-se de qualquer possibilidade de
reflexão, disseram que não poderiam saber já que não estavam na abordagem;
insistimos em questionar a lógica da operação e prontamente responderam: “ah,
provavelmente foi por conta da feira do rolo. Esse povo aí usa tudo o que tem
para fazer rolo nesta feira, trocar com outras coisas, com droga ou objeto de
crime, por exemplo”.
Então é isso. Uma
pessoa em situação de rua é abordada, retiram seus pertences e a
“justificativa” ou a “fundamentação” para tamanha arbitrariedade e abuso de
poder é a feira do rolo? Ou seja, recolho os pertences do cidadão para que ele
não venha cometer, futuramente, algo ilícito, como trocar suas roupas por
drogas, por exemplo? É isso mesmo.
Embora esta ação dos
PMs configure (ao nosso entender) simplesmente um crime de roubo, sua conduta
está “amparada” por uma norma municipal que legitima a ação dos policiais
militares e todo o procedimento burocrático da prefeitura. Segundo a fala do
policial: “Estamos prevenindo crimes, minha Sra.”, e completa: “quando os
pertences são recolhidos e levados para o caminhão da prefeitura, o cidadão
recebe um protocolo e também a orientação de comparecer à subprefeitura
(correspondente ao local onde teve seus pertences recolhidos) pois, após a
análise dos funcionários públicos, ou seja, depois de verificarem que realmente
não há nada de irregular com os produtos apreendidos, os pertences são
liberados para o cidadão”. O que torna a situação ainda mais absurda, porque se
um morador tiver a possibilidade de reaver seus pertences (considerando a
dificuldade e o transtorno de ter de se deslocar até a subprefeitura e a
necessidade de compreender a “lógica” da retirada dos pertences e se expressar
até encontrar o local de retirada), poderá revender na “feira do rolo” mais
tarde e, sendo assim, em absolutamente nada foi eficaz a suposta “prevenção”, a
não ser em adiar um eventual “delito” e alimentar a indignação, insatisfação e
descrença por parte da população vulnerável. E pior, se o morador não for
retirar seus pertences (como deve acontecer na grande maioria dos casos) terá
maior dificuldade de adquirir novos pertences (pois não terá sequer o que tinha
antes para trocar).
Ou seja, não se trata
de uma ação isolada dos Policiais Militares, mas sim de uma determinação da
Prefeitura da cidade de São Paulo, a qual legitima o crime de ROUBO contra os
moradores de rua (tendo em vista a retirada dos pertences sem o consentimento
desta população) com base numa portaria ou decreto municipal.
Diante deste cenário,
o que nos restava, pelo menos naquele momento, era voltar ao palco do
contraditório, à roda de diálogo e chamar a atenção das autoridades que lá
estavam presentes para o ocorrido. E foi o que fizemos. O padre contatou
discretamente autoridades responsáveis para interceder pelo caso específico
para que aquele senhor pudesse reaver seus bens. Esperei a minha vez, tomei o
microfone e me dirigi ao subprefeito da Sé e ao secretário dos direitos humanos
da cidade de São Paulo. Antes de mais nada, educadamente, elogiei o evento,
enfatizando o quão era imprescindível dar voz àquela população tão
marginalizada e vulnerável. Após, narrei a cena de atrocidades contra aquele
Senhorzinho, que seus pertences estavam apreendidos por uma ação conjunta da
Polícia Militar e Prefeitura de São Paulo e que aquele seria o momento mais que
adequado para reverter este quadro de abusos contra esta população. Neste
momento, consegui ler nos lábios do Subprefeito da Sé para eu não me
preocupar, pois os pertences daquele Senhorzinho seriam devolvidos
imediatamente para ele. E então, parei, interiorizei aquele discurso
direcionado e silencioso e respondi. Pois bem, Sr. Subprefeito, a situação
deste Senhorzinho será resolvida, hoje. Amanhã ele pode ser vítima novamente
desta mesma ação, certo? Além disso, e os demais moradores, como ficarão?
Continuarão com seus pertences sendo recolhidos arbitrariamente? Até quando?
Esta ação configura crime de roubo contra esta população. Portanto, já que este
é o momento adequado para questionamentos, intervenções e propostas de efetivas
mudanças para esta população em situação de rua, gostaria de propor que este
tipo de atrocidade tivesse um fim imediato, que esta tal de portaria/decreto
municipal que eu, por sinal, desconheço completamente, fosse revogada
imediatamente, sob pena desta população continuar sendo constantemente violada
e desrespeitada, dada sua vulnerabilidade. Só para concluir, na sacola do
Senhorzinho havia um marmitex, mantas, blusas e casacos e hoje o
termômetro diz que a temperatura máxima na capital não passará dos 15ºC e a
madrugada será fria. Como é que isso é possível? Agradeço muito a atenção e
espero, verdadeiramente, que este pedido seja acolhido imediatamente.
Poucas palavras,
muita emoção e confusão naquele momento, mas a mensagem principal foi
transmitida e não poderia deixar de ser, diante do ocorrido. O que fizemos foi
pouco, nós sabemos, afinal, ter os pertences recolhidos é apenas uma das
inúmeras violências que esta população está sujeita. No entanto, podemos dizer
que não nos calamos diante daquela injustiça e procuramos reverter ao menos a
atrocidade que nossos olhares conseguiram flagrar.
Ademais, muitos
moradores falaram e gritaram (com intensidade, ousadia e coragem) com
determinação e desejo de serem autores de suas próprias histórias. Esta fala,
apesar de vir de um lugar diferente (daquela que nunca foi subjugada nem
tampouco submetida a ter que dispor de seus pertences para averiguação), ecoou
com intensidade, pois falava da verdade vivida cotidianamente por muitos que
aplaudiram por se identificar e se mostrarem agraciados pela oportunidade de
muito mais do que apenas serem ouvidos, mas sim por serem vistos.
Pois é, o Senhorzinho
recuperou sua sacola e junto com ela tudo o que talvez lhe restou desta vida,
um pouco de dignidade e esperança. E nós, saímos de lá aliviadas, por um lado,
ao ter sanado uma ilegalidade pontual, mas extremamente perturbadas por saber
que, ao menos nos próximos dias, meses, quiçá anos, aquela realidade
permanecerá, até que alguma providência de fato seja tomada.
Por isso, os próximos
passos devem ser dados. Comparecer na secretaria de direitos humanos e
verificar quais medidas que serão tomadas frente as falas e reivindicações
apresentadas na roda de diálogo do dia 20/08/13 e, principalmente, se a decisão
(portaria ou decreto) que legitima o recolhimento arbitrário dos pertences de
moradores de rua foi revogada (ou, ao menos, suspensa). De modo contrário, o
caminho mais plausível será entrar em contato com os movimento pró população em
situação de rua e ingressar no judiciário paulista contra este recolhimento
compulsório (se é que já não há nada em andamento), a exemplo do que ocorreu em
Belo Horizonte. O Tribunal de Justiça mineiro acolheu o recurso elaborado pelo
Coletivo Margarida Alves de assessoria popular para confirmar a liminar já
concedida e proibir que os agentes públicos municipais (Fiscalização e Guarda)
e estaduais (Polícia Militar) recolham compulsoriamente os pertences pessoais
da população em situação de rua, sob pena de execução da multa prevista no
acórdão e responsabilização dos agentes públicos envolvidos (clique aqui, para mais detalhes sobre a decisão).
O dia 11 de julho de
2013, então, passou a ser uma data histórica para a população em situação de
rua de Belo Horizonte, já que a decisão determinou que a Prefeitura de Belo
Horizonte e o Estado de Minas Gerais cessassem as violações de Direitos Humanos
desta população.
E, por aqui? Quando
será o momento histórico que a capital mais “rica” do país (São Paulo, 1º lugar
no ranking do IBGE/2010) dará um basta a este tipo de atrocidade
contra a população em situação de rua? Enquanto a resposta é obscura, a luta
será certa. Mobilizaremos interessados, nos juntaremos aos movimentos que
apoiam a causa, não descansaremos e nem deixaremos que a roda de diálogo tão
representativa e autêntica configure um mero e convencional “blá blá blá”.
Natália Macedo Sanzovo é Mestranda em
Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada (OAB/SP 290.884).
Coordenadora-adjunta do Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade
(GDUCC), atividade de extensão universitária da FDUSP. Coordenadora adjunta do
Grupo de Estudos Avançados de Escolas Penais do Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos avançados
sobre as Modernas Tendências do Delito, coordenado pelo Professor Dr. Alexis de
Couto Brito, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Monitora
bolsista do Estágio Supervisionado em Docência, do Programa de Aperfeiçoamento
de Ensino (PAE) da FDUSP.
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