sexta-feira, 26 de julho de 2013

A recaída faz parte do processo de restauração do dependente


* Conceição Cinti.
 
A recaída faz parte do processo de recuperação de um dependente químico. Essa constatação me faz lembrar a história do filho pródigo. Na Bíblia essa história é uma das que mais me fascinam. Fico a imaginar aquele pai generoso e vigilante, com o olhar fixo na estrada, num misto de ansiedade e esperança para reencontrar o filho perdido.



                                            Fonte: Internet

De longe o pai vê o filho e corre para abraçá-lo. No seu dedo coloca um anel que significa o seguinte: esse garoto tem dono, ele é meu, é responsabilidade minha, intransferível, ele é meu e nada me fará desistir dele! Estou disposto a quebrar qualquer agenda para deixá-lo de pé novamente.
Isso se passa na Bíblia porque na prática não são muitos os pais que estão dispostos a investir e a resistir na busca pela cura dos seus filhos. Há pais que tratam com diferença visível, mas de forma velada, os filhos menos inteligentes e sem dotes físicos, e o infeliz que enveredou pelo caminho da drogadição que é duramente discriminando. Fato como esses até parece invenção, tipo brincadeira grosseira, mas existe aos montes e geralmente essa garotada fica anos a fio frequentando consultório psiquiátrico, quando a cura de todos os seus males seria o peito, o afeto, a atenção e a disponibilidade do pai para ouvi-lo.
A recaída tão temida por todos, na verdade, faz parte do processo de recuperação do dependente e dificilmente deixará de acontecer, principalmente quando a dependência é pelo crack. As recaídas acontecerão quantas vezes forem necessárias para ser aprendida. Sem esse recurso usado pela psicologia a recaída deixa de ser terapêutica.
A maior dificuldade da recaída do dependente não está nele próprio, e sim, na resposta sempre violenta e inadequada por parte dos pais, familiares e até de amigos, que pensam em juntar cacos humanos com críticas, pressão e, em alguns casos, até com ameaças, ao invés de reforçar a resistência que se exauriu e a impotência que tomou conta do combalido recuperando.
A minha postura nesse caso é nunca desistir até que a restauração aconteça. Um adicto precisa de um tempo para se adaptar à presença de pessoas estranhas ao seu mundo. São várias as mudanças a serem enfrentadas no processo de recuperação: o espaço físico onde está sendo realizado o tratamento; os novos comportamentos que deverá adotar nesse novo espaço, como a aceitação e incorporação da imprescindível disciplina. Por isso, é comum que ele se sinta invadido, confuso e passível a oscilar entre permanecer no tratamento ou dar uma pausa. Este tipo de incidente de percurso é como uma tragédia anunciada e pode ocorrer apesar de todo apoio recebido, mas o recuperando sempre retornara se tiver sido cativado e essa é a importância do amor despendida pela família, pelos amigos e pelos profissionais que o acompanham.
Diante dessa realidade e pela experiência que tenho em recuperação de dependentes e daqueles já envolvidos com a criminalidade, a melhor opção para cativá-los é se disponibilizar e fazê-lo sentir que ele poderá retornar e que será bem-vindo para finalizar seu programa de restauração a qualquer momento. Não há como restaurar um dependente químico com prazo determinado ignorando as diversidades dos efeitos colaterais provocados pelas drogas que ele usa não apenas no seu físico e na sua mente, mas é necessário considerar a mistura de sentimentos que ele precisa enfrentar e que são únicos e próprios de cada pessoa.
Quase todos os monitores que faziam parte da minha equipe multidisciplinar eram ex-dependentes, por essa razão têm outra leitura sobre esse incidente de percurso. Compromissados com a restauração, em virtude da experiência que viveram, precisamente nesse momento esse tipo de profissional também se torna a pessoa que tem mais autoridade junto ao recuperando para persuadi-lo a dar continuidade ao tratamento.
Com muita habilidade, uma equipe compromissada, tem condições não apenas de reverter a crise que levou o dependente à recaída, mas minimizar o sofrimento moral e psicoemocional causado por ela, além de usar toda a dor do retrocesso para aprender e reforçar os sentimentos e o pensamento em favor da vida.
O crack por si só já é excludente, pois transforma a pessoa mais dócil em alguém extremamente arredio e sem autocontrole. Esses fatos somados à compulsão pela “pedra” que é aterrorizante e intermitente fazem com que o dependente do crack seja mais propenso a recaídas que os usuários de outras drogas. Contudo, isso não quer dizer que os demais tipos de dependência não envolvam recaídas. Os operadores do mundo da drogadição sabem que a recaída faz parte do percurso de restauração de qualquer dependente de substâncias psicoativas e precisa ser administrada de forma a nunca humilhá-lo, sem deixar que o paciente pense que o problema é com ele, que ele é fraco, e ao invés disso fazê-lo rever o percurso que ele fez até a recaída, o que o ajudara a descobrir onde houve a falha e como reforçá-la para evitar novas recaídas.
Nunca desistir é a recomendação aos pais. Na luta do dia a dia e utilizando as técnicas de motivação com persistência, o recuperando sentirá que não está sozinho e assim ele não perderá a esperança, pois sentirá que todos ao seu lado confiam que ele poderá reverter esse quadro. De fato, o recuperando precisa se sentir amparado e nunca censurado.
Pais combatentes e equipe vocacionada nunca desistirão e serão gratificadas com a melhor láurea: ver seu querido, seu paciente pronto para lutar o novo round da vida. A recuperação de fato acontece: é difícil, mas é possível, para aqueles que decidem pagar o preço.
Somente diante de tantas nuances e de tantos detalhes que envolvem o tratamento de um dependente químico, e aos quais muitas vezes não estamos atentos, principalmente quando não conhecemos de perto esse processo de recuperação e resgate de vidas, é que podemos avaliar os programas de recuperação de dependentes desenvolvidos pelo poder público, a exemplo do Cartão Recomeço, lançado pelo Governo de São Paulo em maio deste ano. Levando em consideração o fato de que a reação e os sentimentos variam de acordo com cada dependente químico (já que esses sentimentos são originados pelo tipo e pelo tempo de uso de determinada droga) como criar um programa com perfil de público e tempo de atendimento pré-definidos?
Para quem conhece de perto o duro caminho percorrido para se alcançar a recuperação sabe que tais exigências são incompatíveis com a realidade e que muito dificilmente o programa conseguirá resultados exitosos. Sem falar em outras limitações que também podem ser alvo de críticas no programa Cartão Recomeço por tornarem a iniciativa passível de fracassar.
O que mais intriga no programa Cartão Recomeço é que ele não deixa nítida a continuidade no tratamento, que corresponde as diversas fases importantes para que o dependente se autodiscipline e alcance o controle sobre suas emoções, sentimentos e pensamentos, incluindo a forma como o dependente lidará com suas recaídas e o que aprenderá com cada uma delas, afinal, com certeza cair e se reerguer faz parte do processo que o conduzirá à liberdade e a uma vida mais digna.

* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org


sábado, 20 de julho de 2013

Dor versos Abstinência

* Conceição Cinti

“Se a nossa meta é crescer, aprender e descobrir coisas acerca de nós mesmos e de Deus, então, infelizmente, uma vida de facilidades não será provavelmente o meio de conseguir isso. Eu sei que eu tenho aprendido muito pouco sobre mim ou Deus quando tudo está indo bem”
(Francis Collins, líder do projeto Genoma Humano)




                                            Fonte: Internet

O tratamento médico e psicológico dos usuários de drogas é bastante complexo e envolve diversas facetas que estão diretamente relacionadas com o tipo de droga usada e o grau de dependência. A desintoxicação, que pode ser realizada por meio da suspensão de qualquer substância que cause dependência, seja ilícita ou lícita (incluindo-se o tabaco), é polêmica e o método considerado radical por alguns especialistas. Entretanto, a maioria das comunidades terapêuticas opta pela retirada radical de toda e qualquer substância que cause dependência.
Contudo, é importante registrar que as comunidades terapêuticas não se utilizam apenas da ciência elas usam o método misto: ciência e espiritualidade. E na operacionalização da desintoxicação, priorizam o resgate espiritual como uma alternativa de recuperar. Eu sou adepta da retirada radical, desde que o paciente não seja dependente de derivados do ópio.
No organismo do usuário de drogas, acostumado à porção diária de substâncias psicoativas, é possível que, na fase inicial da desintoxicação, se instale a síndrome de abstinência, para os dependentes de álcool, e a psicose tóxica, para dependentes de outras drogas, cujos sintomas podem ser leves ou severos, dependendo do estado físico e do grau de comprometimento da dependência.
Na síndrome de abstinência podem ocorrer sintomas físicos, que causam mal estar, podendo ser traduzidos por meio de tremores, transpiração excessiva, insônia, náuseas, vômitos, aceleração dos batimentos cardíacos, queda na pressão arterial, dores abdominais etc. Pode haver ainda alucinações, ansiedade e até convulsões, bem como um quadro de ansiedade, muito medo e sensação de estar sendo perseguido.
É um sofrimento real, e esse sofrimento pode ser tão intenso e esmagador que necessita ser administrado com eficiência e compaixão pela equipe multidisciplinar. Embora de ordem psicológica, esse sofrimento jamais poderá ser banalizado. No caso do dependente em tratamento, a abstinência é provocada pela retirada da droga com a deliberação da equipe multidisciplinar, com o acordo dos pais ou familiares do recuperando e, às vezes, quando possível, com a anuência do mesmo.
Para isso, competentes profissionais, sejam em clínicas, comunidades terapêuticas ou outros espaços, optam e trabalham com competência no gerenciamento da redução de danos. Nesses casos, é permitido ao dependente ingerir porção balanceada da substância que necessita, de acordo com cada caso e a cargo da equipe responsável.
Em minha opinião, os dependentes com severo comprometimento pelos derivados do ópio, a exemplo da morfina e da heroína, necessitam dessa ingestão até que seu organismo volte a produzir novamente endorfinas. Fora esses, nos demais casos, a minha experiência particular através de décadas trabalhando como gestora da Equipe Multidisciplinar de Programas de Restauração de Dependentes de Substâncias Psicoativas, afirmo que os registros de síndrome de abstinência foram mais frequentes que os da psicose tóxica.
Em um processo de recuperação de dependentes de droga é fundamental a qualidade da preparação prévia do recuperando, visando criar um ambiente de total confiabilidade entre ele e a equipe, possibilitando encorajá-lo a lutar e acreditar em sua capacidade de reverter a angustiante situação.
No trabalho visando elevar sua autoestima ou de cercá-lo de todos os cuidados necessários, ter como integrante da equipe multidisciplinar um monitor ex-dependente faz toda a diferença na condução e na minimização da dor desse paciente, que está muito fragilizado, carente e extremamente vulnerável. A presença de um monitor com esse perfil é importantíssima não apenas para facilitar a comunicação entre ambos, tendo em vista as especificidades da linguagem própria dos usuários de drogas, cujos sentimentos são externados muito mais com gestos do que com palavras, mas também facilitar e permitir que as intervenções da equipe sejam mais precisas. Temos que admitir que por mais competente que seja uma equipe multidisciplinar ela não tem a experiência de alguém que viveu o drama de ser um dependente de drogas.

Após muitos anos na luta diária pela restauração de vidas, convenci-me de que os sentimentos e o olhar enigmático de um dependente falam com intensa transparência, mas só podem ser devidamente decodificados por meio da lupa generosa do olhar de alguém com experiência própria, como um ex-dependente restaurado e vocacionado para trabalhar com aqueles que como ele, um dia, não tinha nenhuma perspectiva de retomar a própria vida, enfrentou as mesmas mazelas e vivenciou o horror da perversidade do mundo das drogas.
Desde que o mundo é mundo, o homem procura evitar o sofrimento; o que é possível por um tempo, nunca o tempo todo. Por exemplo, ao longo da nossa trajetória de vida para crescermos, amadurecermos e conquistarmos nossos sonhos temos que enfrentar muitas adversidades ou até mesmo passar por experiências doloridas, mesmo que o mundo moderno tenha um arsenal de práticas para evitar a dor. Atualmente, somos ensinados desde criança a combater a dor, mesmo que ela não seja física, ingerindo remédios, e por isso muitos de nós temos grande probabilidade de nos tornarmos dependentes.
Entretanto, como seres humanos, é impossível evitarmos por completo a dor, principalmente a psicológica, decorrente dos mais variados sentimentos. Dificilmente somos ou estamos preparados para ouvir um não ou para enfrentar as perdas e então nos tornamos ainda mais frágeis diante dessa inevitável realidade a que estamos sujeitos ao longo da vida. O cientista Francis Collins, líder do projeto Genoma Humano, em entrevista divulgada pelo site da revista National Geographic, destaca o quanto é fundamental que o ser humano passe por momentos dolorosos para crescer enquanto pessoa. “Antes de tudo, se a nossa meta é crescer, aprender e descobrir coisas acerca de nós mesmos e de Deus, então, infelizmente, uma vida de facilidades não será provavelmente o meio de conseguir isso. Eu sei que eu tenho aprendido muito pouco sobre mim ou Deus quando tudo está indo bem”. A declaração de Collins nos faz perceber que potencializar a dor e transformá-la em uma conversa íntima consigo mesmo e com Deus pode ser uma fonte de descobertas e aprendizado, além de ser altamente terapêutico.
Sou adepta da overdose de afeto, generosidade, compaixão, oração e música, da imprescindível graça, sem abrir mão do bom humor e de menos drogas lícitas ou ilícitas para ajudar o recuperando a superar suas dores e perdas. Esses ingredientes têm se mostrado poderosíssimos na elevação da autoestima, da autodeterminação do recuperando, ajudando-o a superar a dor com menos sofrimento.
A recompensa é a liberdade, infinitamente superior à dor das perdas, dos hábitos e costumes durante o processo de restauração. Afinal, tudo que um dependente tem são drogas: drogas de hábitos, drogas de costumes e as drogas propriamente ditas. Nessa transposição, que podemos denominar até da fase de insanidade para a sobriedade, o dependente percorre um caminho dolorido, mas altamente recompensador porque deságua no autodomínio, no autocontrole e no encontro com Deus e consigo mesmo. A libertação e a restauração de pessoas é possível!
* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência demais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Itaquerão pode ser mais útil a sua comunidade



                                         Fonte: Internet

* Conceição Cinti.

Propostas de investimento em grandes obras públicas não faltam no Brasil, e pelo jeito, investimentos desse caráter em obras privadas, também não. É compreensível que recursos públicos sejam destinados a projetos que irão beneficiar a sociedade, mas o que dizer da destinação de verbas públicas para empreendimentos particulares? É verdade que algumas iniciativas privadas têm beneficiado a população do local onde estão instaladas, mas esse não é o seu escopo, por isso é preciso que estejamos bem atentos às distintas proporções entre os ganhos designados às iniciativas privadas e os benefícios destinados à população, em especial aos moradores de baixa renda do local do empreendimento.
Um exemplo prático e atual para que possamos refletir é o recente investimento da Prefeitura Municipal de São Paulo no Estádio de Futebol do Clube de Futebol Corinthians, o já famoso Itaquerão. As exigências da FIFA para que o estádio sedie os jogos da Copa do Mundo de 2014 culminaram na necessidade de construir o Itaquerão, que custará ao todo R$ 820 milhões, sendo R$ 462 milhões oriundos dos cofres públicos, segundo matéria divulgada pelo Portal de Notícias R7 no dia 26 de junho de2013. O valor correspondente à isenção é suficiente para construir 14 hospitais com 150 leitos cada um, de acordo com a notícia do R7, o que amenizaria o precário atendimento médico oferecido à população, uma vez que constantemente faltam leitos e vagas nas UTIs dos hospitais locais.
Mesmo se tratando de um dos times mais festejados e ainda que esse investimento esteja sendo feito através da isenção fiscal do terreno onde está sendo construído, é imprescindível considerar diversos fatores, dentre os quais considero de grande importância avaliar a realidade socioeconômica dos cerca de3,3 milhões de moradores ali concentrados, segundo dados do site oficial da Prefeitura de São Paulo, e os benefícios que eles terão com determinada construção ou atividade. Afinal de contas, nesse caso, o dinheiro público está sendo utilizado para um fim privado, que da forma como está planejado em nada contribuirá para as transformações sociais que a região reclama com urgência. Como se trata de dinheiro público, salvo melhor juízo, o custo versos benefício não me parece autorizar essa liberalidade. Trata-se de uma região com grande deficiência de escolas, creches, hospitais, segurança dentre muitas outras necessidades que por certo vem em primeiríssimo lugar. Devo registrar que em uma administração séria quando o dinheiro é escasso para cobrir demandas prioritárias precisa ficar muito claro o que é prioritário para a população e o que é necessário. O investimento prioritário é aquele que a comunidade não pode mais renunciar, o que não é o caso em questão.
Se apelarmos um pouco para o bom senso perceberemos que mediante as condições de vida dos moradores do Distrito de Itaquera, que compõe a região Leste de São Paulo, provavelmente a construção de um estádio de futebol naquela área não seria prioridade. Apesar de ser um ambiente de entretenimento, um estádio destinado unicamente para assistir a partidas de futebol não contribui para o desenvolvimento social e humano dos moradores nem para a transformação que aquela comunidade necessita imediatamente, tendo em vista que o Itaquerão está sendo construído em uma das áreas mais pobres da capital paulista: a zona leste. A região concentra índices de desenvolvimento humano e social muito abaixo do considerado ideal em virtude da negação de direitos básicos, como educação, saúde, segurança, lazer e cultura. Sem falar do baixo nível de escolaridade da maior parte da população, da falta de emprego e da sobrevivência através de subempregos, e principalmente dos altos índices de violência. Lá também está localizada a Fundação Casa, unidade de cumprimento de medidas socioeducativas com constantes denúncias de torturas e maus tratos aos socioeducandos. Essa problemática também deveria ser alvo de investimentos para se alcançar a recuperação de tantos adolescentes.
É nesse espaço de alta vulnerabilidade social que apenas pequenos grupos irão se beneficiar, como estão se beneficiando alguns com a valorização de áreas próximas ao Itaquerão. Contudo, ainda há tempo de reverter essa situação em prol da sociedade como um todo. Talvez o mais apropriado não seja um pedido de anulação das doações, conforme está sendo providenciado por zelosos Promotores Públicos (muito embora a intervenção do Promotor seja louvável porque é em defesa do interesse público), mas quem sabe fosse mais apropriado tentar que os investimentos já firmados sejam revertidos em benefício da sociedade. Por que não aproveitar a construção para estruturar, anexo ao estádio, um complexo esportivo, cultural e profissionalizante, onde toda a comunidade, em especial crianças, adolescentes e jovens, poderá usufruir de diversas modalidades esportivas, atividades artísticas e culturais, além decursos profissionalizantes? E antes de colocarmos empecilhos à sugestão de adaptação do projeto, lembremos que hoje em dia, no âmbito da construção civil e da arquitetura e com imprescindível vontade política, tudo é possível. Basta que os nossos governantes assumam a responsabilidade que têm com a população, em especial com a parcela mais vulnerável.
É preciso acreditarmos que a educação, o esporte, a cultura e a profissionalização são meios eficazes para prevenir a violência e restaurar vidas. No entanto, não basta implementar atividades de forma assistencialista, sem haver reponsabilidade e compromisso com a formação humana e cidadã das pessoas atendidas pelas atividades oferecidas. No âmbito da profissionalização, uma sugestão é buscar parcerias com o Sistema S, que oferece cursos profissionalizantes de qualidade em todo o Brasil, com certificação garantida, o que possibilita ainda mais a empregabilidade dos profissionais assistidos pelos cursos. O Sr. Paulo SKaf, presidente do Fiesp de São Paulo e candidato à governador do Estado, com certeza teria muito a contribuir com a criação e estruturação dos cursos profissionalizantes e de qualificação profissional com base no mercado de trabalho, melhorando a qualidade de vida da população local. Enfim, diversas são as possibilidades de tornar obras pouco úteis para a sociedade em meios de formar seres humanos e cidadãos com direitos garantidos e consequentemente homens e mulheres mais dignos.
Não é concebível que em tempos de grandes manifestações por mudanças sociais em nosso país, gastos exorbitantes de dinheiro público sejam articulados de maneira tão escancarada e investidos em obras que não trazem nenhum benefício para a comunidade. Os gritos nas ruas devem impedir atitudes minimamente refletidas que resultam em desperdício de dinheiro público, valores estes suficientes para garantir educação, saúde e outros direitos fundamentais para se viver com dignidade. A liberalidade concedida através da prefeitura e do Estado, através do BNDS, precisará ser empregada de uma forma que venha de fato contribuir para aumentar o índice de desenvolvimento humano. O poder público não pode brincar de administrar o dinheiro público, fruto do suor das pessoas de baixa renda que arcam com uma carga tributação das mais pesadas do mundo e o retorno quase sempre vem na contra mão das necessidades dessa gente sofrida.


* Conceição Cinti é advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org.


Assassinato com palavras

* Conceição Cinti

Tenho pensado muito sobre a violência generalizada que estamos vivendo, em especial a violência que muitos de nós deliberadamente produzimos com nossas próprias palavras. Diz a bíblia que a língua é um dos menores membros do nosso corpo, mas tem o poder de vida e de morte muitas vezes incalculável.

 Muito se fala em homicídios praticados por armas de fogo, inclusive, o Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo, divulgado em março de 2013, revela que 36.792 pessoas foram assassinadas a tiros em 2010, um número que mantém o país com uma taxa de 20,4 homicídios por 100 mil habitantes, a oitava pior marca entre 100 nações com estatísticas consideradas relativamente confiáveis sobre o assunto. Entretanto, muito pouco ou nada se fala sobre os assassinatos provocados pelas palavras, que na verdade pode ser o principal instrumento de violência entre os seres humanos. 

Na verdade, com a língua afrontamos, injuriamos, caluniamos, difamamos, insultamos e humilhamos as pessoas. Em síntese através da língua deformamos a autoestima e ferimos almas, ou seja, sentimentos e emoções, e são esses sentimentos feridos, que, embora invisíveis, estão sempre por trás dos crimes mais hediondos, aqueles que ao assistir na televisão não encontramos explicação ou simplesmente condenamos seus autores. Não estou aqui defendendo autores de crimes, muito menos de homicídios, mas provocando uma reflexão sobre o que pode levar um ser humano a acabar com a vida do outro de forma tão cruel e, para nós, por motivo banal.  

Para mim a língua é uma das armas mais perigosas, mais que a bomba atômica, porque com a língua injetamos no ser humano doses altas de ressentimento (e há aqueles que preferem injetar doses homeopáticas) gestando dentro da pessoa o ódio, que adoece e deixa a alma agonizante. Um homem com a alma ferida e com os sonhos e a esperança destruídos é capaz de cometer insanidades que não podemos presumir.

 A esperança ou a fé pode ser considerada a mola propulsora que conduz o ser humano rumo aos seus objetivos mais desejados. Sem esperança, não há sonhos, os projetos se perdem, a pessoa passa a se sentir ninguém e por isso acredita cegamente que nada tem a perder. Na verdade o peso da língua  é capaz de amputar o amor próprio, a autoestima, o orgulho de ser alguém e é nesse contexto que o cenário fica pronto para que a tragédia aconteça e gere outras tragédias.

Mas a combustão se torna imediata e seus efeitos devastadores aparecem quando entra em cena a sutileza da indiferença. Afinal de contas já dizia o ativista político Martin Luther King: ‘O que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas’. Pessoas essas que possivelmente ao longo de um determinado tempo vivenciaram e sentiram na pele humilhações e também foram vítimas da indiferença que um dia vieram a protagonizar.   

Depois da desgraça feita, da vida ceifada, não dá para ver nem levar em conta o peso da subjetividade da ação que na maioria das vezes a própria vítima desencadeou. Repito que não estou fazendo apologia a quaisquer que sejam os motivos que levam uma pessoa a tirar a vida de outra, até porque acredito que a vida é um dom de Deus e ninguém tem o direito de tirá-la, mas estou querendo sim chamar a atenção para que possamos ser mais cuidadosos, respeitosos nas nossas falas e sábios para distinguir o que deve e o que não convém falarmos com o outro.

A forma como falamos com as pessoas e as atitudes que expressamos na lida diária com aqueles ao nosso redor, desde os mais íntimos (nossos familiares e amigos) até mesmo aqueles com quem temos uma relação estritamente profissional faz toda a diferença. Há pessoas que por imaturidade ou arrogância acham que têm o direito sobre a vida e sobre a morte das pessoas que de alguma forma estão sob sua gestão. Engano crasso que poderá tornar essa pessoa uma vitima de seu Eu gigante que o impede de enxergar os direitos e a dignidade do outro. 

Por traz da maioria dos assassinatos cometidos por armas de fogo ou armas brancas está o verdadeiro motivo que faz com que seres humanos apertem o gatilho, finquem uma arma branca sem dó ou utilizem um arsenal mais sofisticado para ceifar a vida do outro com requintes de crueldade, como se fosses verdadeiros animais. E o são, se considerarmos as decisões instintivas que muitos serem humanos tomam motivados por sentimentos menores. 

Segundo o poeta J. Gaiaça: “o ser humano é entre todos os seres vivos existentes o mais fascinante, mas também o mais complexo, o mais surpreendente”. Essa conceituação do poeta por si só já sugere cautela nas relações com esse ser inebriante, mas ao mesmo tempo uma imprevisível criatura que tem facetas desconhecidas por ele próprio. Refletir ainda que minimamente sobre nossas posturas no trato diário com aqueles  que tem parte do nosso DNA ou não é preciso. Por isso, devemos sempre lembrar que as nossas atitudes diárias por anos a fio podem determinar um destino feliz ou não para nós mesmos!

Primar pela harmonia das relações é hoje uma forma eficaz de prevenir conflitos desnecessários. Nada que um olhar de compaixão não possa perceber e evitar ou transformar uma possível tragédia em benção. Se ainda não podemos contar com a nossa sensibilidade e compaixão para com o outro que apelemos para o conhecimento que adquirimos através da formação acadêmica que nos faz reconhecer que o outro também tem direitos garantidos e que precisam ser respeitados. Eu ainda considero a primeira opção mais verdadeira e eficaz para combater a gritante violência a que assistimos todos os dias.   
  

* Conceição Cinti é advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org.




terça-feira, 2 de julho de 2013

Noruega como modelo de reabilitação de criminosos Considerada pela ONU, em 2012, o melhor país para se viver (1º no ranking do IDH) e de acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, o 8º país com a menor taxa de homicídios no mundo, lá o sistema carcerário chega a reabilitar 80% dos criminosos, ou seja, apenas 2 em cada 10 presos voltam a cometer crimes; é uma das menores taxas de reincidência do mundo.



LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do Portal atualidadesdodireito.com.br. Estou no blogdolfg.com.br.

O Brasil é responsável por uma das mais altas taxas de reincidência criminal em todo o mundo. No país a taxa média de reincidência (amplamente admitida mas nunca comprovada empiricamente) é de mais ou menos 70%, ou seja, 7 em cada 10 criminosos voltam a cometer algum tipo de crime após saírem da cadeia.
 Alguns perguntariam “Por quê?”. E eu pergunto: “Por que não”? O que esperar de um sistema que propõe reabilitar e reinserir aqueles que cometerem algum tipo de crime, mas nada oferece para que essa situação realmente aconteça. Presídios em estado de depredação total (veja teoria das janelas partidas), pouquíssimos programas educacionais e laborais para os detentos, praticamente nenhum incentivo cultural, e, ainda, uma sinistra cultura (mas que divertem muitas pessoas) de que bandido bom é bandido morto (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche).
Situação contrária é encontrada na Noruega.  Considerada pela ONU, em 2012, o melhor país para se viver (1º no ranking do IDH) e de acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, o 8º país com a menor taxa de homicídios no mundo, lá o sistema carcerário chega a reabilitar 80% dos criminosos, ou seja, apenas 2 em cada 10 presos voltam a cometer crimes; é uma das menores taxas de reincidência do mundo. Em uma prisão em Bastoy, chamada de ilha paradisíaca, essa reincidência é de cerca de 16% entre os homicidas, estupradores e traficantes que por ali passaram. Os EUA chegam a registrar 60% de reincidência e o Reino Unido, 50%. A média europeia é 50%.
A Noruega associa as baixas taxas de reincidência ao fato de ter seu sistema penal pautado na reabilitação e não na punição por vingança ou retaliação do criminoso. A reabilitação, nesse caso, não é uma opção, ela é obrigatória. Dessa forma, qualquer criminoso poderá ser condenado à pena máxima prevista pela legislação do país (21 anos), e, se o indivíduo não comprovar estar totalmente reabilitado para o convívio social, a pena será prorrogada, em mais 5 anos, até que sua reintegração seja comprovada.
 No presídio, um prédio, em meio a uma floresta, decorado com grafites e quadros nos corredores, e na qual as celas não possuem grades, mas sim uma boa cama, banheiro com vaso sanitário, chuveiro, toalhas brancas e porta, televisão de tela plana, mesa, cadeira e armário, quadro para afixar papéis e fotos, além de geladeiras. Encontra-se lá uma ampla biblioteca, ginásio de esportes, campo de futebol, chalés para os presos receberem os familiares, estúdio de gravação de música e oficinas de trabalho. Nessas oficinas são oferecidos cursos de formação profissional, cursos educacionais e o trabalhador recebe uma pequena remuneração. Para controlar o ócio, oferecer muitas atividades educacionais, de trabalho e lazer são as estratégias.
 A prisão é construída em blocos de oito celas cada (alguns deles, como estupradores e pedófilos ficam em blocos separados). Cada bloco contém uma cozinha, comida fornecida pela prisão e preparada pelos próprios presos. Cada bloco tem sua cozinha. A comida é fornecida pela prisão, mas é preparada pelos próprios detentos, que podem comprar alimentos no mercado interno para abastecer seus refrigeradores.
 Todos os responsáveis pelo cuidado dos detentos devem passar por no mínimo dois anos de preparação para o cargo, em um curso superior, tendo como obrigação fundamental mostrar respeito a todos que ali estão. Partem do pressuposto que ao mostrarem respeito, os outros também aprenderão a respeitar.
 A diferença entre o sistema de execução penal norueguês em relação ao sistema da maioria dos países, como o brasileiro, americano, inglês é que ele é fundamentado na ideia que a prisão é a privação da liberdade, e pautado na reabilitação e não no tratamento cruel e na vingança.
 O detento, nesse modelo, é obrigado a mostrar progressos educacionais, laborais e comportamentais, e, dessa forma, provar que pode ter o direito de exercer sua liberdade novamente junto a sociedade.
 A diferença entre os dois países (Noruega e Brasil) é a seguinte: enquanto lá os presos saem e praticamente não cometem crimes, respeitando a população, aqui os presos saem roubando e matando pessoas. Mas essas são consequências aparentemente colaterais, porque a população manifesta muito mais prazer no massacre contra o preso produzido dentro dos presídios (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche).
** Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.



59% dos brasileiros, em maio, admitiam futuro promissor para o Brasil

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidadesdodireito.com.br. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br*

Na presidência da República o serviço de inteligência não antecipou absolutamente nada sobre as manifestações populares de junho de 2013. O serviço de inteligência não funcionou (O Estado de S. Paulo de 23.06.13, p. A4). A Revolução J-13 (junho de 2013) tampouco foi prevista pelos meios de comunicação, partidos, instituições governamentais ou privadas. Ninguém imaginou a revolta popular mais contundente e eletrizante, depois da redemocratização (1985). Por quê?

Porque os órgãos de pesquisa encarregados de fazer flutuar o modelo econômico-financeiro injusto e desigual, que tomou conta do mundo inteiro, mostravam, à primeira vista, um cenário favorável para os países emergentes. Pesquisa divulgada no dia 23.05.13, pela Pew Researcher Center, que é um instituto de pesquisa americano especializado em temas políticos, econômicos e sociais, apontava o seguinte: a maioria dos países centrais (com algo grau de desenvolvimento) estava insatisfeita com a sua economia; já os países emergentes se mostravam satisfeitos com os rumos que as suas economias vinham tomando.

Foram aplicados questionários em 39 países, separados por três diferentes categorias – economias avançadas, mercados emergentes e países em desenvolvimento econômico, baseado nos grupos de renda do Banco Mundial, tipo de economia e classificação de especialistas.

Em maio de 2013 a pesquisa dizia que, em média, 53% dos países com mercados emergentes diziam que suas economias iam bem, em comparação com 33% dos países pouco desenvolvidos e 24% de países com economia avançada. Estão particularmente negativas (as economias) em países Europeus como a França (9% de satisfação positiva), Espanha (4%), Itália (3%) e Grécia (1%). Participantes em mercados emergentes como China (88%) e Malásia (85%) disseram que a economia vai especialmente bem. No Brasil, 59% dos participantes da pesquisa se disseram satisfeitos com o país em termos econômicos.

Quando perguntados como eles acreditam que a economia estaria daqui a 12 meses, 79% disseram acreditar que a economia iria melhora, 15% acreditavam que permaneceria igual e outros 6% julgaram que estaria pior. China chegou a 80% de otimismo e Malásia 64%. A maioria dos países europeus não esteve tão otimista. Nos EUA, 33% dos entrevistados disseram acreditar numa piora da economia, na Espanha chegou a 47%, na França 61% e Grécia 64%.

Apesar de se mostrarem satisfeitos com as possibilidades de melhora da economia, a maioria dos países se dizia insatisfeita com os rumos que o país vinha tomando. Entre os participantes da pesquisa no Brasil, 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. Dos países de mercado emergente, China e Malásia foram os países que mais demonstraram ter boa perspectiva sobre o futuro do país, com mais de 80% dos entrevistados satisfeitos. Já Grécia, Itália e Espanha foram os mais desacreditados por 2%, 3% e 5% da população insatisfeita, respectivamente.

Seguindo o mesmo passo, a maioria dos países acredita que a economia está atualmente ruim. Em metade dos países de mercado emergente, ao contrário, a população acredita que a economia está boa, apresentando em média 70%. No Brasil, esse índice chegou a 59% de satisfação, enquanto China e Malásia apresentaram cerca de 80% e a Argentina 39% de satisfação. Países da Europa como Grécia, Itália e Espanha apontaram, em média, 97% de insatisfação.

O que faltou em relação ao Brasil? Perceber que os brasileiros se mostravam satisfeitos com a economia (59% em maio de 2013), mas não escondiam preocupações sérias: 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. De outro lado (como informou o Valor Econômico):

Principal problema - Ao apontar o principal problema que o governo deve enfrentar, 46% dos brasileiros ouvidos na pesquisa apontaram a falta de oportunidades de emprego, ainda que a taxa de desocupação esteja hoje nas mínimas históricas. É uma fatia bem superior aos 24% que pedem mais atenção aos preços em alta, mesmo num cenário em que a inflação segue perto do teto da meta, de 6,5%.

Desigualdade - Apesar da redução da desigualdade de renda apontada por indicadores socioeconômicos nos últimos anos, 75% dos entrevistados no Brasil dizem que esse ainda é um grande problema, com 50% dizendo que a distância entre ricos e pobres tem aumentado.

É essa injustiça brutal e secular relacionada com a desigualdade (Casa Grande e Senzala) que foi parar nas ruas de todo país. Ocorre que essa injustiça, como vem de 1.500, é ignorada por todo mundo dominante. Ela foi naturalizada (internalizada) no nosso processo de socialização. Mas o ser humano não suporta a injustiça eternamente. Um dia tinha que se rebelar. E se rebelou!


*Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

PEC 37 e o crime organizado S.A.


LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br

O que está por trás da revolta popular contra a PEC 37 (que tenta afastar os promotores e procuradores das investigações)? É a sensação de mais impunidade, sobretudo dos crimes cometidos pelos poderosos (institucionais, econômicos ou financeiros).

É um erro sem precedente (no campo das investigações criminais) não ver que todos os órgãos públicos (polícia, Ministério Público, receita federal, Coaf, Banco Central etc.) devem somar suas energias, não se dividir, diante do crime organizado S.A. Hoje há sérios obstáculos para o Ministério Público presidir investigações por falta de lei. No futuro, todos os esforços de todas as instituições devem ser somados, porque é grande o desafio de combater o crime organizado privado ou público-privado.

O final trágico e grotesco da CPI do Cachoeira (arquivamento total em duas páginas) nos evidenciou patentemente o quanto o poder público e os políticos estão conchavados (até o último fio de cabelo) contra os interesses da nação.

No mundo da economia submetida (em grande parte) ao crime organizado e à lavagem de capitais, lavagem essa que é feita, sobretudo (mas não exclusivamente), por alguns bancos norte-americanos e europeus (HSBC, Bank of America etc.), que internalizaram (naturalizaram) seus procedimentos lucrativos por meio de métodos duvidosos ou criminosos, tornou-se difícil distinguir o que é ganho lícito do que é ganho ilícito.

Tudo está se mimetizando (mesclando), diariamente. Tudo que se ganha com o tráfico de drogas, de armas ou de seres humanos ou com sua lavagem se mescla com ganhos lícitos, o que dificulta sobremaneira a atuação da justiça arcaica, com seus velhos procedimentos esfarrapados.

Está fazendo muita falta a exemplaridade, sobretudo dos políticos e dos agentes econômico-financeiros, que valeria como guia para o comportamento de todos os demais seres humanos, que andam descrentes com o seu futuro, diante de tanta destrutividade (da natureza, dos seres humanos, dos orçamentos públicos, das instituições, da confiança nelas etc.).

Não sejamos, portanto, idiotas, no sentido grego. Idiótes (em grego) é aquele que só vive sua vida privada, que não aceita qualquer tipo de participação na política (no governo da cidade) (cf. Cortella e Janine Ribeiro, Política para não ser idiota).

 Os protestos, que estão sacudindo o Brasil e surpreendendo os poderes constituídos, estão também contrariando nosso senso comum, de que a participação na vida pública seria inútil ou perniciosa (seria algo que não vale a pena). Muita gente afirma que idiotice é querer participar da vida política do seu município ou estado ou país. Os escândalos e os desmandos gerados pelos nossos atuais políticos (ressalvadas as exceções), em lugar de nos desestimular, ao contrário, estão servindo de combustível para uma nova postura ativa, contra toda essa situação marcada pela falta de confiança. Avante Brasil!


Relacionamento sexual com menor de 13 anos: absolvição



LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br

A notícia: TJES - Decisão excepcional absolve acusado de estupro

Sempre salientando a excepcionalidade da decisão, tendo em vista aspectos específicos do processo, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) mantiveram, na sessão da última quarta-feira (5), à unanimidade, a absolvição de um homem que foi acusado pelo Ministério Público Estadual pelo crime de estupro de vulnerável ao estabelecer convívio conjugal com uma menor de 13 anos de idade.

A decisão foi tomada no julgamento da apelação criminal do MP contra a sentença da juíza Adriana Costa de Oliveira, da 3ª Vara Criminal de Vila Velha, que se baseou, igualmente, na excepcionalidade, pois a menor já tinha um filho do acusado e ficou comprovado, nos autos do processo 035100950522, que em nenhum momento houve violência contra ela, que foi abandonada pelo pai e vivia com os avós.

O voto do relator da apelação, desembargador Adalto Dias Tristão, foi seguido pelos desembargadores Fernando Estevam Bravin Ruy e Telêmaco Antunes. Todos os três registraram que estavam tomando a decisão em caráter excepcional, pois, na reforma de 2009, o Código Penal colocou sob a mesma tipificação criminal o ato sexual contra menores de 14 anos, consentido ou não.

Mesma sorte, entretanto, não teve outro acusado de estupro de vulnerável, condenado a 12 anos de reclusão em regime fechado pelo juiz Marco Aurélio Soares Pereira, da Vara Criminal da Comarca de Marataízes. O máximo que ele conseguiu foi reduzir sua pena para 8 anos, porque os desembargadores Fernando Bravin (relator), Adalto dias Tristão e Sérgio Luiz Teixeira Gama compreenderam que o agravamento da pena não se aplicaria.

O homem, que, segundo o advogado de defesa, era ministro religioso na Paróquia local, foi preso em flagrante por policiais militares, depois que os pais de uma menina, na época com 10 anos de idade, denunciou que ele havia atraído a criança para sua casa e a forçado a atos libidinosos. A criança chegou em casa chorando e narrando o acontecido, em janeiro de 2010. O agressor vai continuar cumprindo pena em regime fechado.

Fonte: Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Nossos comentários:

Nenhuma lei incriminadora no campo penal (ou seja: nenhum tipo penal) pode ser interpretado como se fosse um leito de Procusto (que cedia sua cama ao visitante, com a condição seguinte: se o visitante fosse menor que a cama, suas pernas seriam espichadas; se fosse maior, suas pernas seriam cortadas; ou seja: o visitante tinha que se encaixar exatamente no tamanho da cama). Ninguém pode manter relação sexual com quem tem menos de 14 anos, sim, e se o sujeito mora com essa pessoa, constituiu família com ela, tem filho com ela, vive sua vida para ela? Quando eu era juiz, em São Paulo, absolvi um caso assim. O réu namorava a mãe, mas acabou tendo relação amorosa com a enteada, que ficou grávida. Ele se mudou para S. J. dos Campos, arrumou emprego na Embraer, constituiu família, o filho nasceu etc. etc. Não tive coragem de condenar! Se a lei fosse para ser aplicada automaticamente, sem análise concreta do caso, melhor seria deixar tudo por conta do computador!