quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Meninos de Rua






Meninos de rua

*Conceição Cinti

Vulneráveis, essas crianças e adolescentes são levados e colocados à disposição do Poder Público e, ao invés de serem acolhidos, lhes subtraem a essência do ser humano.

Ao contrário dos meninos ricos que na maioria das vezes se perdem dentro de suas próprias mansões pela falta de limites e excesso de riqueza, os meninos pobres do Brasil se perdem nas ruas à míngua e ignorados muitas vezes por aqueles que têm o dever de acolhê-lo, com ele se envolver, se importar e cuidar, afinal, é para isso que recebem dos cofres públicos. Completamente abandonados e à mercê da sorte são despojados de todos seus direitos diante de uma sociedade preconceituosa, egoísta e nada solidária. A imagem de menino que não tem valor muitas vezes é reforçada pela mídia populista e, o mais grave, com a permissão do Poder Público é achincalhado com palavras de ordens do tipo: “monstros, irrecuperáveis, prisão perpétua ou morte é o mínimo”.
Vulneráveis, essas crianças e adolescentes são levados e colocados à disposição do Poder Público e, ao invés de serem acolhidos, lhes subtraem a essência do ser humano. É por essa razão que às vezes olhamos para uma criança que cronologicamente ou biologicamente é uma criança e já não vemos nela um menino ou uma menina, pois tudo que conseguimos enxergar é um ser repulsivo ao convivo social e rejeitado. Para que se possa olhar e enxergar uma criança em alguém que já foi mutilado na sua dignidade é necessário que tenhamos a responsabilidade e a sensibilidade de identificar na sua alma as feridas causadas pela indiferença de uma sociedade egoísta e posteriormente destroçada por um Poder Público deliberadamente fraco e inoperante no cumprimento de sua obrigação de acolher e tratar meninos e meninas, tendo em vista a falta de compromisso com a dignidade humana das pessoas de baixa renda que são a maioria das crianças e adolescentes presos desse imenso país pobre.
O documentário denominado “Meninos de Rua” demonstra a trajetória das crianças que viviam nas ruas de Belo Horizonte (MG) nos anos de 1980. Já se passaram 23 anos dos episódios retratados nesse documentário e apenas recentemente as autoridades brasileiras admitiram a epidemia de drogas no Brasil, fazendo alguma mobilização para combater essa situação e cujos resultados, na prática, ainda são ínfimos em relação a grande demanda de dependentes.
Portanto, é forçoso reconhecer que o mais provável é que o número de crianças mortas durante essas décadas de indiferença do Governo esteja além do que se possa imaginar. Além disso, o elevado número de meninos e meninas em tenra idade dependentes de drogas continua sendo uma realidade apesar dos esforços do poder público para suprimir deliberadamente as estatísticas que comprovam esta situação que persiste em acontecer porque pouca coisa ou quase nada foi construído para acolher essas crianças e adolescentes além de mais unidades de cumprimento de medidas socioeducativas.
O Colégio Salesiano, de Minas Gerais, já entendia naquela época que esse assunto requer a solidariedade de todos para que possamos salvar nossas crianças, o futuro do Brasil. Contudo, a situação de Minas Gerais é apenas um fragmento do descaso, da desumanidade com as crianças e adolescentes brasileiros de baixa renda em todos os Estados da nossa Federação. Essa situação vem sendo denunciada por mim como “O Holocausto Brasileiro”, onde crianças, adolescentes e jovens são mortos todos os dias sem que nenhuma providência seja tomada para evitar esse morticínio.
É dever salientar que temos grandes dificuldades para levantar estatisticamente o número desses desvalidos menores de 15 anos, que se iniciam nas ruas como dependentes químicos e posteriormente se envolvem com a criminalidade para custear sua dependência. Por essa razão, esse documentário produzido por pessoas idôneas, como é o caso da direção dos Salesianos e da pessoa de Dom Bosco, é de extrema relevância para que possamos tomar como base concreta para defender esses meninos que vivem à margem de todos os seus direitos.
Nas estatísticas oficiais constam apenas menores, a partir de 15 anos de idade. Porém salta aos olhos, que apesar das mortes precoces virem acontecendo a decádas é grande em todos os Estados da Federação o números de crianças comprometidas como o uso de drogas e trabalhando para o tráfico de drogas, que podemos até dizer que no mundo comtemporâneo, se tratar da modalidde mais perversa do trabalho escravo, como tão claramente nos elucida outro documentário igualmente relevante denominado "Falcão, meninos do tráfico", produzido por iniciativa (privada) e com a participação do Rapper MV Bill.
Para combatermos e dominarmos uma endemia necessitamos de um diagnóstico real, transparente, para podermos utilizar todas as estratégias necessárias e adequadas à situação a fim de atingirmos o controle da realidade e só assim ter condições reais de combater com eficiência e obter sucesso.
Portanto, ao sonegar informações a respeito da real situação do comprometimento de crianças entre seis e dez anos de idade em situação e risco iminente de mortes violentas em razão das drogas não é apenas vergonhoso para o país, mas se constitui um crime grave contra essa parcela indefesa da população, o que torna necessária uma investigação por parte do CNJ e demais organizações, inclusive internacionais, para que cesse o horror do que venho denominando de “O Holocausto Brasileiro”.
Das ruas, esses meninos e meninas de baixa renda, dependentes químicos e já em confronto com a lei, e sobre os quais o Poder Público não mantém deliberadamente um rígido controle sobre quantos são de fato, têm seus destinos traçados nessas instituições públicas em total vulnerabilidade e à disposição do Poder Público, ao invés de serem acolhidos e recuperados.

Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em tratamento de dependentes de substâncias psicoativas e em delinquência juvenil. Palestrante e autora do blog http://educacaorestaurativa.blogspot.com.br

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Nada é mais perturbador, do que pensar na sujeição sexual indiscriminada, imposta a mulher presidiaria, como a única forma de preservar sua vida.



*Conceição Cinti
Recentemente o Brasil assumiu, normativamente, o compromisso de diminuir com a violência de gênero. A Lei Maria da Penha – Lei 11.340/06, muito mais que objetivar a proteção da mulher contra a violência doméstica, representou avançado vitorioso no sentido de reconhecer que a MULHER É ALVO DE VIOLÊNCIA pelo simples fato de SER MULHER.
E embora muito se tenha obtido favoravelmente à causa com o advento da mencionada Lei, sabe-se que o Brasil ocupa, hoje, o 7º lugar no ranking mundial na violência de gênero. Contabiliza-se 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres. Um número vergonhoso!
Abordaremos aqui a violência sofrida pela mulher no sistema penitenciário brasileiro.
As condições subumanas das prisões no país não é fato desconhecido. Pelo contrário. O próprio Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, reconheceu publicamente que o sistema penitenciário brasileiro compara-se às masmorras medievais[1].
 No tratamento das mulheres submetidas a cumprimento de pena privativa de liberdade, a situação chega a ser monstruosa!
Em Presos que menstruam¸ obra de Nana Queiroz (Editora Record, 2015), tem-se uma assombrosa noção do que as mulheres passam numa penitenciária brasileira. A negligência já começa na higiene. Mulheres presas recebem o mesmo número de itens de higiene que homens, apesar de usarem o dobro do papel higiênico. Por essa razão, utilizam-se, por exemplo, de jornal velho.
Há também relatos da confecção de absorventes íntimos de miolo de pão! Ou o que? Acreditam que o Estado fornece absorventes para as mulheres presas?
Mas a verdade é que há uma luta constante de uma presidiária por sua vida.
Se os abusos sexuais em prisões masculinas não são raros, imagine-se na penitenciária feminina, onde as detentas, presumidamente mais vulneráveis do ponto de vista físico, abrem mão até de sua vocação sexual natural, comprometendo de forma indelével sua dignidade humana.
A força física e algum status dentro do presídio são instrumentos poderosos que subjugam mulheres e as fazem cativa sexualmente de qualquer um (ou uma), que detenha a força e o poder.
Como o sexo é uma moeda de barganha dentro dos presídios femininos, não há que se falar em estupro ou qualquer outra modalidade de crime sexual contra a mulher presidiária. A mulher dentro do presídio fica absolutamente vulnerável e entregue à força bruta.
Sabemos que todos os presídios brasileiros são uma vergonha nacional no descumprimento aos DIREITOS HUMANOS. Há, como dissemos, excessos também nos presídios masculinos. Mas o que é exceção nos presídios masculinos, é regra no sistema carcerário feminino.
A mulher condenada à prisão no Brasil é impiedosa e duplamente apenada. Ela perde não apenas seu direito de liberdade, mas perde também seu direito à vida. E para evitar que uma tragédia lhe tire a vida tem que fazer concessões, que na maioria das vezes violentam e matam seus sentimentos.
Falência dos sentimentos e emoções é o que consigo imaginar de alguém que diariamente é submetida a uma situação sexual contraria à sua natureza, apenas para poder sobreviver. Esse fato acontece diariamente, diuturnamente, nos presídios femininos, mas é uma barbárie, uma aberração que precisa ser corrigida.  Porque esse tipo de tratamento que é aplicado nas prisões brasileiras, é o mais terrível que um ser humano pode se submeter.
Por uma gestão de gênero, a mulher necessita de mais assistência, que o homem no que concerne a sua higiene pessoal. Por essa razão está sujeita a passar mais privações nos presídios brasileiros. Então percebemos que a mulher tem duas frentes para encarar.
Além de ter que ceder às “carícias e desejos” de qualquer que detenha o poder, ou a força, para sobreviver, luta muito no dia a dia para garantir sua higiene pessoal. A questão da higiene para mulher encarcerada é um item que lhe acarreta mais sofrimento e desconforto que ela tem que lutar para preservar sua saúde. Porém, nada é mais perturbador, que pensar na sujeição sexual indiscriminada, imposta a mulher presidiária, como a única forma de preservar a sua vida.
*Conceição Cinti- Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa. Especialista em Tratamento de Dependentes em Substâncias Psicoativas e Delinquência Juvenil, com experiência de mais de três décadas. Colunista do Jus Brasil.

 [1] MARTINS, Luísa. “Presídios do país são masmorras medievais, diz Ministro da Justiça”. O Estado de S. Paulo.  05 nov. 2015. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,presidios-brasileiros-sao-masmorras-medievais--diz-ministro-da-justica,10000001226>

domingo, 22 de novembro de 2015




Educar para ‘ser’ como forma de combate à delinquência juvenil

Uma maior preocupação com a formação do ‘ser’ há de preceder a formação do ‘ter’ e toda a essa parafernália aplicada precocemente pela sociedade capitalista aos nos jovens. Essa inversão de valores contribuirá cada vez mais para acumularmos apenas rancores e mortes.

Hoje falarei de um dos assuntos mais polêmicos, a questão do jovem que comete ato infracional. Para isso, preciso contar com a participação de todos, favoráveis ou não, sem os quais não será alcançado o resultado que a sociedade necessita e será impossível encontrarmos uma saída apropriada para a verdadeira ‘guerra civil’ não declarada, que ao longo de décadas acumula apenas rancores e mortes, muitas mortes.

Sabem os operadores na área de restauração de vidas de dependentes em Substâncias Psicoativas (SPA) que não dá para falar sobre dependência sem falarmos sobre delinquência, porque a maioria dos menores dependentes pobres, mais cedo ou mais tarde, chegarão à delinquência. Quando se trata de menor infrator, há uma verdadeira aversão ao assunto, que não é apenas um assunto, mas se trata de um fato funesto que vem acontecendo há décadas, sem a intervenção apropriada por parte do Poder Público, e se constitui no que eu denomino “O Holocausto Brasileiro”, vitimando nossas crianças e jovens.

É preciso não apenas denunciar, mas impedir o morticínio juvenil. Há uma aversão em torno do menor delinquente, que é motivada, em grande parte, pela exploração midiática populista que, ao invés de promover as informações esclarecedoras sobre a real situação em que vive o jovem de baixa renda nesse país, corrobora apenas para fomentar o sentimento de vingança, que gera, tão somente, mais tragédias.

Precisamos deixar a aversão e o mito que cerca esse tema e partir para o enfrentamento maduro, na busca por um melhor equilíbrio nas relações sociais de uma forma geral, garantindo a ressocialização que, lamentavelmente, só existe na lei. Essa luta, na minha singela opinião, se inicia com um investimento maciço na educação das famílias, mais especificamente no amadurecimento das relações entre pais e filhos, educadores e seus pupilos, entre pais e educadores. O palco mais apropriado para isso é a educação.

Promover uma mudança na cultura de valores de competição e retribuição para valores da cooperação, da solidariedade e da restauração das relações humanas, por meio do perdão e da mediação, é o caminho certo para um mundo civilizado e de paz. Quando as pessoas são educadas para os valores, para que respondam aos anseios de respeito mútuo e dignidade humana, há nesse fato uma maior probabilidade/certeza de respostas mais concretas para as grandes tragédias, que são inerentes à sociedade egoísta e competitiva. Uma maior preocupação com a formação do ‘ser’ há de preceder a formação do ‘ter’ e toda a essa parafernália aplicada precocemente pela sociedade capitalista aos nos jovens. Essa inversão de valores contribuirá cada vez mais para acumularmos apenas rancores e mortes.

A proposta da Educação Restaurativa é que a educação seja o instrumento dessas mudanças, um caminho onde haja espaço para a reflexão das nossas necessidades enquanto pessoas, sem excluir as necessidades do outro, do próximo. Que a preocupação como a formação de uma sociedade mais equitativa esteja no bojo dessas reflexões, como o caminho novo, quiçá a única possibilidade verdadeira de transformação de um novo conceito de vida, liberdade, justiça, a ser construída pelas experiências diárias a respeito e de respeito por si mesmo, pelo outro e pelo ambiente em que vivemos. Essa nova forma de pensar o mundo faz toda a diferença e precisa estar embutida na célula familiar, educacional e civil, com o imprescindível apoio do Poder Público.
* Conceição Cinti Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em tratamento de dependentes de substâncias psicoativas e em delinquência juvenil. Palestrante e colunista no Jus Brasil.

 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Presos que menstruam: Descubra como é a vida das mulheres nas penitenciárias brasileiras



Recomendo o verdadeiro e oportuno artigo de Camila Vaz ( graduada em Letras, estudante de Direito pela UNEB). O referido artigo é o protótipo dos presídios de mulheres no Brasil. Vergonha e descumprimentos de Direitos Humanos.

Presos que menstruam: Descubra como é a vida das mulheres nas penitenciárias brasileiras

O sistema carcerário brasileiro trata as mulheres exatamente como trata os homens. A luta diária dessas mulheres é por higiene e dignidade.


Publicado por Camila Vaz 
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Descubra como a vida das mulheres nas penitencirias brasileiras
Maria Aparecida lembrava uma avó. Uma dessas avós imaginárias que cresceram com histórias de Dona Benta. Cabelos grisalhos, ombros curvados, pelé caída de um jeito simpático ao redor dos olhos, expressão bondosa. Ela estava sentada, quieta e isolada, no fundo de um auditório improvisado na Penitenciária Feminina de Santana, em São Paulo, quando desatou a contar histórias da vida. Revelou que foi presa ao ajudar o genro a se livrar de um corpo. A certa altura contou que tinha apenas 57 anos. A cadeia havia surrado sua aparência, ela envelhecera demais. Tinha criado 20 filhos, mas há quase três anos não recebia nenhuma visita ou ajuda, um Sedex sequer, e tinha que se virar com a bondade do Estado. E a bondade do Estado com as presas sempre esteve em extinção no Brasil. “Sabe, tem dia que fico caçando jornal velho do chão para limpar a bunda”, contou, sem rodeios.
Conversando com detentas como Maria para meu livro Presos que menstruam, lançado este mês pela Editora Record, percebi que o sistema carcerário brasileiro trata as mulheres exatamente como trata os homens. Isso significa que não lembra que elas precisam de papel higiênico para duas idas ao banheiro em vez de uma, de papanicolau, de exames pré-natais e de absorventes internos. “Muitas vezes elas improvisam com miolo de pão”, diz Heidi Cerneka, ativista de longa data da Pastoral Carcerária.
A luta diária dessas mulheres é por higiene e dignidade. Piper Chapman, protagonista da série Orange is the New Black, cuja terceira temporada acabou de estrear no Netflix, provavelmente não sobreviveria numa prisão brasileira. Se a loira ficou abalada ao encarar as prisões limpinhas dos Estados Unidos, como reagiria às masmorras medievais malcheirosas e emboloradas brasileiras, nas quais bebês nascem em banheiros e a comida vem com cabelo e fezes de rato? As prisões femininas do Brasil são escuras, encardidas, superlotadas. Camas estendidas em fileiras, como as de Chapman, são um sonho. Em muitas delas, as mulheres dormem no chão, revezando-se para poder esticar as pernas. Os vasos sanitários, além de não terem portas, têm descargas falhas e canos estourados que deixam vazar os cheiros da digestão humana. Itens como xampu, condicionador, sabonete e papel são moeda de troca das mais valiosas e servem de salário para as detentas mais pobres, que trabalham para outras presas como faxineiras ou cabeleireiras.
Gardênia, uma traficante com a mente corroída pelas drogas e a cadeia, é um exemplo vivo de como o Estado ignora gêneros nas prisões do país. Quando foi presa pela última vez, Gardênia estava com uma gravidez avançada. Ganhou no grito o direito de ir a um hospital — muitas mulheres não têm a mesma sorte e precisam dar à luz na cadeia mesmo, com ajuda das outras presas. Gardênia ficou algemada à cama durante boa parte do trabalho de parto e, quando sua filhinha Ketelyn nasceu, não pôde sequer pegar o bebê no colo. “A vida da presa é assim: não pode nem olhar se nasceu com todos os dedos das mãos e dos pés.” Quem sofre as consequências desse parto-relâmpago até hoje é a menina, que, aos 17 anos, bate a cabeça na parede toda noite até adormecer.
Nenhuma grávida ou mãe que amamenta tem regalias na cadeia. Em geral, as camas são dadas às mais antigas. Se não contarem com a caridade das demais, as mães têm de dormir no chão com seus bebês. Sim, bebês também vivem em presídios brasileiros (confira os números abaixo). A lei garante à criança o direito de ser amamentada pela mãe até, ao menos, os seis meses de idade. Apesar de tecnologias como caneleiras eletrônicas já permitirem que a amamentação seja feita em prisão domiciliar, isso raramente acontece. “A violação de direitos humanos com relação às gestantes é generalizada”, diz a ativista Heidi. Além disso, os relatos de tortura são comuns mesmo entre grávidas. Um caso chocante é o de Aline, uma traficante que, durante a detenção em Belém do Pará, tomou uma paulada na barriga e ouviu do policial: “Não reclame, esse é mais um vagabundinho vindo para o mundo”.
Safira era uma moça bonita com cabelos de fogo e olhos grandes. Casou-se muito cedo, teve dois filhos e saiu de casa por apanhar do marido. Trabalhava num supermercado, embrulhando sucos orgânicos e bolachas recheadas que nunca poderia comer. Um dia, chegou em casa e o filho chorava de fome. O dinheiro havia acabado e o leite também. Chorou um pouco, bateu na casa do vizinho, pediu uma arma emprestada e foi roubar. Na cadeia, Safira se transformou de uma menina doce e ingênua numa mulher dura que obedece às normas locais. “As guardas têm as regras delas, e nós, as nossas”, explica. “Tem um monte de coisas que não podemos fazer, e chamamos isso de disciplina. E quem sai dessa disciplina é cobrada. Por isso existem as facções. Elas sempre têm alguém que vai nos dizer o que devemos fazer. E o crime mais grave de todos é matar criança. Quem faz isso tem que ficar isolada ou vai sofrer.” Outro preceito importante é não mexer com as convertidas: evangélicas são protegidas pelo temor geral a Deus.
Além da religião, outra maneira de garantir uma vida melhor na cadeia é o amor. Enquanto as lealdades nas prisões masculinas são determinadas pelas facções criminosas, nas femininas elas giram em torno dos casamentos. Essa foi uma lição aprendida rápido por Marcela, uma mulher de classe média presa por auxiliar dois amigos em um assassinato por vingança. Alvo de inveja por sua boa condição financeira, Marcela mal podia fechar os olhos para dormir. A segurança veio nos carinhos de Iara, uma detenta que a cobriu de atenção, proteção e companheirismo. A identificação entre as duas evoluiu para amizade, a amizade para afeto, o afeto ganhou pelé, calor e cabelos entrelaçados. E Marcela, que só havia se relacionado com homens, apaixonou-se por Iara.
Um estudo de 1996 estimava que 50% das detentas, como Marcela, se envolviam com outras mulheres. De lá para ca esse número só cresceu. Algumas dizem que não são, mas estão lésbicas. “Tem aquelas que assumem, e aquelas que fazem escondidinho”, afirma Vera, sequestradora e homossexual assumida desde antes do crime. “Mas as que curtem mulher mesmo, como eu, são poucas. Tem as que optam por isso porque se apaixonam, para tirar uma onda, por curiosidade. E umas que ficam porque se sentem ameaçadas. Se você é bonita, você incomoda. Se é muito feia, incomoda também. Rola muita inveja.” E nenhuma esposa de cadeia, ela complementa, deixa sua mulher entrar em briga sozinha.
Pega por permitir que o namorado usasse sua casa como cativeiro, a estudante de direito Júlia orgulha-se de ser uma das poucas que não se envolveram com mulheres durante a pena. E admite que seu fraco mesmo são os homens criminosos. “Pode colocar dez trabalhadores e um preso numa sala, vou me apaixonar pelo preso”, diz. Inteligente e crítica, a prisão foi difícil para ela, que ganhou o apelido maldoso de Julia Roberts por causa dos cabelos bem cuidados e tingidos de loiro. Para tolerar o desrespeito das demais, recorreu a um excesso de calmantes, receitados costumeiramente e sem muito critério pelos psiquiatras das penitenciárias. O namorado que levou Júlia ao crime, no entanto, nunca apareceu para defendê-la ou visitá-la. “A maioria das mulheres aqui também foi presa por culpa de um homem”, diz. “E eles são os primeiros a desaparecer.”
Para aliviar a solidão e o abandono, outra preciosidade nas cadeias femininas é o celular — uma das poucas maneiras de arrumar um namorado lá fora. Safira confessa já ter usado esse artifício mais de uma vez. “Sempre alguém apresenta alguém. ‘Minha amiga, fulana de tal’, ‘Manda uma foto.’ E a gente acaba arrumando alguém que vai lá visitar a gente. Pelo menos eu sempre arrumei, né?”, ela se vangloria, estufando o peito e dando um sorriso maroto. Trocar favores com carcereiros é outra estratégia de sobrevivência disponível. Não há estupros, já que o sexo é também uma moeda na barganha. A ativista Heidi Cerneka se recorda de uma presa que, assim, havia conquistado o direito de usar um computador, com internet e até jogos, na sala da administração do presídio.
Ao contrário da série do Netflix, a vida nas prisões femininas brasileiras não é uma comédia. Quem perde com isso é a sociedade. Ao esquecer a humanidade de nossas infratoras — e de seus bebês —, deixamos de lado nossa própria humanidade.

RAIO X DAS PRISÕES FEMININAS

Os dados mais recentes do Ministério da Justiça, de 2013, mostram que:
36.135 mulheres estão presas no Brasil
22.666 é a capacidade do sistema
13.469 em superlotação
3.478 funcionários monitoram toda essa população
647 estão presas em locais inadequados, como delegacias e cadeias públicas
54% identificam-se como negras ou parda
747 são estrangeiras
67% não completaram o ensino médio
60% não têm parceiro em relação estável
60% respondem por tráfico de drogas
6% respondem por crimes violentos contra pessoas
345 crianças vivem no sistema penitenciário brasileiro hoje
4 a 8 anos é a média das penas cumpridas
18 a 24 é a faixa etária mais comum
0 é o número de rebeliões em todas as 80 penitenciárias femininas em 2013
*Nana Queiroz é autora do livro Presos que menstruam (Editora Record, 294 páginas, R$ 40), diretora executiva da Revista AzMina e criadora do protesto “Eu não mereço ser estuprada”.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A explosão carcerária é uma tragédia anunciada (agora mais de 600 mil presos)

 
      Por Luiz Flávio Gomes
      Prendemos mal (muita gente não violenta – 50% dos presos) e muito, quando nos comparamos com outros países (estamos com 300 presos para cada 100 mil pessoas, contra a média de 100 na Europa, por exemplo). De 2008 a 2014 os EUA diminuíram sua população carcerária em 8%, China em 9% e Rússia em 24%. Holanda e Noruega estão fechando presídios (quem cuida bem das escolas não precisa de tantos presídios). O Brasil, ao contrário, cresceu 33%. A população brasileira aumentou no período 16% (taxa de 1,1% ao ano). Em 2002 teremos 1 milhão de presos; em 2075 1 em cada 10 brasileiros estará na cadeia (neste item o filme Tropa de Elite não estava equivocado).
A criminalidade no Brasil sobe tanto quanto, no momento, as taxas de juros e a inflação. Mas nem todos os crimes justificam o encarceramento. Fazemos pouco uso das penas alternativas. Com a cabeça de guerra queremos dizimar todos os “inimigos sociais”. Dentro das cadeias e presídios brasileiros são assassinadas 67 pessoas para cada 100 mil detentos (por ano); fora dos presídios a taxa é de 29/100 mil (Ilimar Franco, O Globo 24/6/15).
Colocar alguém na universidade do crime deveria ser coisa como último remédio. Mas não é assim que raciocinamos. Gastamos de 2 a 3 mil com cada preso, mensalmente. Pior: a criminalidade não está diminuindo (ao contrário, só tem aumentado – em 1980 contávamos com 11 assassinatos para 100 mil pessoas; hoje já pulamos para 29). Relatório divulgado em 23/5/15 pelo Departamento Penitenciário Nacional informou que a população carcerária chegou a 607.731 presos em junho de 2014, ou seja, 299,7 presos para cada 100 mil habitantes.
Em 1990, o Brasil custodiava em suas prisões 90 mil presos, o que significa que desde então houve um crescimento de 575% nesse número. Em 2000 tínhamos 232.755 presos. Daí para cá o crescimento foi de 161%. O Brasil é o 4º do mundo em população prisional (atrás de EUA, China e Rússia). Se computarmos os presos domiciliares, somos o 3º do planeta (com mais de 715 mil presos).
 
Nosso desempenho educacional, em contrapartida, é ridículo, quando cotejado com o aumento da população carcerária. Em 1990, nossa média de escolaridade era de 3,8 anos (nem metade dos 7,2 anos de 2012). Nesse item não crescemos nem 100%. Tudo fica muito pior quando enfocamos a qualidade do ensino (na “Pátria Educadora”): o Brasil está entre as últimas posições no exame Pisa, prova internacional feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 62 países. No quesito leitura, a posição brasileira é a 49ª, mesmo lugar ocupado na prova de Ciências. Em matemática, o Brasil está em 53º lugar.
País que não tem significativa e contínua melhora na educação (nem quantitativa nem qualitativa) é o que manda seus jovens para o cemitério ou para a prisão. Assim é o Brasil. Que melhorou muito nos últimos 50 anos (Arretche, Marta, diretora: Trajetória das desigualdades), mas continua com números ridículos, em termos internacionais.
Dos 607 mil presos cerca de 580 mil estão no Sistema Penitenciário, 28 mil nas carceragens de delegacias e nas Secretarias de Segurança e 358 estão no Sistema Penitenciário Federal. São 376.669 vagas e um déficit de 231.062 vagas, ou seja, uma taxa de ocupação de 161% (quase duas pessoas para cada vaga). Em termos proporcionais, o Brasil – com 300 presos para cada 100 mil pessoas – é o quarto do mundo, atrás dos EUA (698 presos por 100 mil habitantes), da Rússia (468 mil presos por 100 mil habitantes) e da Tailândia (457). Quem não investe pesadamente em educação acaba gastando seus escassos recursos com prisão.
O Brasil fecha escolas para construir estabelecimentos penais. Isso tudo vai se agravar em pouco tempo (com as mudanças legislativas em curso, que vão mandar mais 30 ou 40 jovens para a prisão – muitos não violentos). Há muita gente lutando para construir um Brasil melhor. Mas também há um bocado de destruidores (o paraíso maravilhoso descoberto pelos primeiros exterminadores e extrativistas – colonialismo português – pode virar pó se esses destruidores não forem contidos a tempo).
*Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto 
 

terça-feira, 23 de junho de 2015

O palco da contradição.


 

Por Natália Macedo Sanzovo


Parabenizo a minha amiga Natália Macedo Sanzovo,  pela sua postura sempre corajosa e humanitária, diante da injustiça dos desvalidos. Ela diz que resolveu apenas um fato pontual.

Se cada pessoa se importasse mais com a injustiça dos desvalidos (pobres e destituídos de qualquer poder) com certeza teríamos menos violência no mundo.

 
Há pouco mais de um ano, 20/08/13, eu e uma amiga psicóloga, Isabel Hamud, fomos conferir a roda de diálogo que estava sendo realizada na praça da Sé, entre autoridades, população, movimentos sociais e pessoas em situação de rua. Atividade esta organizada e promovida pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania; uma iniciativa muito bonita e verdadeiramente digna de aplausos.

O objetivo desta roda de diálogo, de um modo geral, era o de dar VOZ a esta população extremamente vulnerável e, a partir de suas falas e reivindicações, pensar em políticas públicas que pudessem atender as suas necessidades.

Nossa primeira surpresa foi nos depararmos com a organização do evento; apesar de sabermos de antemão (por meio do convite) que era uma atividade promovida pela própria prefeitura, tínhamos a expectativa de que fosse uma “roda” pequena e simples, mas nos deparamos com um palco, sistema de som com microfones, inúmeras cadeiras, equipe de filmagem, toda a praça com pinturas feitas por moradores de rua, cartazes e ampla participação.

Pois bem, enquanto assistíamos atentamente o discurso do secretário de Direitos Humanos que, por sinal, trouxe uma fala (aparentemente) muito verdadeira e cheia de vontade, nos chamou a atenção uma escancarada cena de violação aos direitos humanos.

Logo atrás de nós, a uns 4 metros, mais ou menos, um Senhorzinho, também em situação de rua (frágil, cansado, perdido), que procurava entender o significado das palavras do “homem de terno” e de todo aquele palco montado, foi abordado por policiais militares.

Ele se identificou aos policiais, apresentou seu RG e, então, foi dado início a revista de seus pertences. Ele portava apenas uma pequena sacola plástica. Dentro da misteriosa sacola, os PMs (sim, eram mais de 2) “contra” aquele potencial agressor encontraram “perigosas” mantas e casacos velhos e um “ofensivo” marmitex vazio. Pronto, satisfeitos com a significativa “apreensão”? Não, não foi o bastante. Percebemos, então, uma movimentação, a sacola sendo lacrada e o Senhorzinho sendo conduzido pelos PMs até o Distrito Policial mais próximo.

Neste momento, rapidamente abandonamos a roda de diálogo (evento promovido justamente para suscitar e combater estas questões de atrocidades contra o ser humano) para acompanhar ao vivo a afronta que estava acontecendo contra aquele Senhorzinho em situação de rua (ou seja, estávamos diante de um verdadeiro palco do contraditório).

Chegando no Distrito, avistamos o Senhorzinho, que fora liberado, porém, sem a sua sacola. Ela fora apreendida, lacrada e levada para o caminhão da Subprefeitura da Sé, juntamente com tantas outras sacolas, esperanças, sonhos e pertences de outras pessoas, também em situação de rua.

E o Senhorzinho? Estava lá, ao lado do caminhão, segurando, agora, apenas o que lhe restou, um protocolo com um número de lacre na mão, demonstrando sentir-se deslocado e perdido.

Na ocasião, nos aproximamos do Senhorzinho e perguntamos (mesmo já sabendo de tudo que tinha acontecido), o que estava ocorrendo. A este momento já haviam se juntado a nós outras pessoas, estudantes e um padre, também interessados em esclarecer a situação. E então, resumidamente ele nos respondeu: “levaram minhas coisas, tudo, não tinha nada de mais, só tinha umas blusas, uns casacos”.

Na verdade ele nem imaginava a dimensão da atrocidade que tinha sofrido e a completa ilegalidade da qual estava sendo vítima. Indignadas e convictas que estávamos diante de uma situação totalmente injustificada, procuramos compreender a razão para tamanha violação (como se houvesse alguma!) e, então, nos dirigimos aos PMs que estavam presentes no local (não os responsáveis pela apreensão, pois não estavam lá) e perguntamos se eles poderiam nos explicar porque aquele Senhorzinho teve sua sacola apreendida. Qual a fundamentação?

A resposta foi simples e genérica. Disseram que os PMs responsáveis pela apreensão estavam no exercício de sua função, logo, é dever deles realizar as abordagens quando suspeitam de alguma ilegalidade e completaram: “está na lei, Sra., tanto na Constituição Federal, no parágrafo 5º do artigo 144, como no parágrafo 2º do artigo 240 do Código de Processo Penal”.

Neste momento, totalmente insatisfeitas com aquela resposta, mas sem muito tempo para discutir sobre os limites do poder de polícia; o constrangimento acarretado ao Senhorzinho e as demais ilegalidades escancaradas, perguntamos o crucial aos PMs: Mas e a sacola, porque foi lacrada e apreendida? Não havia nenhuma irregularidade com os pertences daquele Senhor, nós acompanhamos o momento que ele foi revistado, só haviam casacos, blusas, mantas e um marmitex. E, então, de maneira evasiva e esquivando-se de qualquer possibilidade de reflexão, disseram que não poderiam saber já que não estavam na abordagem; insistimos em questionar a lógica da operação e prontamente responderam: “ah, provavelmente foi por conta da feira do rolo. Esse povo aí usa tudo o que tem para fazer rolo nesta feira, trocar com outras coisas, com droga ou objeto de crime, por exemplo”.

Então é isso. Uma pessoa em situação de rua é abordada, retiram seus pertences e a “justificativa” ou a “fundamentação” para tamanha arbitrariedade e abuso de poder é a feira do rolo? Ou seja, recolho os pertences do cidadão para que ele não venha cometer, futuramente, algo ilícito, como trocar suas roupas por drogas, por exemplo? É isso mesmo.

Embora esta ação dos PMs configure (ao nosso entender) simplesmente um crime de roubo, sua conduta está “amparada” por uma norma municipal que legitima a ação dos policiais militares e todo o procedimento burocrático da prefeitura. Segundo a fala do policial: “Estamos prevenindo crimes, minha Sra.”, e completa: “quando os pertences são recolhidos e levados para o caminhão da prefeitura, o cidadão recebe um protocolo e também a orientação de comparecer à subprefeitura (correspondente ao local onde teve seus pertences recolhidos) pois, após a análise dos funcionários públicos, ou seja, depois de verificarem que realmente não há nada de irregular com os produtos apreendidos, os pertences são liberados para o cidadão”. O que torna a situação ainda mais absurda, porque se um morador tiver a possibilidade de reaver seus pertences (considerando a dificuldade e o transtorno de ter de se deslocar até a subprefeitura e a necessidade de compreender a “lógica” da retirada dos pertences e se expressar até encontrar o local de retirada), poderá revender na “feira do rolo” mais tarde e, sendo assim, em absolutamente nada foi eficaz a suposta “prevenção”, a não ser em adiar um eventual “delito” e alimentar a indignação, insatisfação e descrença por parte da população vulnerável. E pior, se o morador não for retirar seus pertences (como deve acontecer na grande maioria dos casos) terá maior dificuldade de adquirir novos pertences (pois não terá sequer o que tinha antes para trocar).

Ou seja, não se trata de uma ação isolada dos Policiais Militares, mas sim de uma determinação da Prefeitura da cidade de São Paulo, a qual legitima o crime de ROUBO contra os moradores de rua (tendo em vista a retirada dos pertences sem o consentimento desta população) com base numa portaria ou decreto municipal.

Diante deste cenário, o que nos restava, pelo menos naquele momento, era voltar ao palco do contraditório, à roda de diálogo e chamar a atenção das autoridades que lá estavam presentes para o ocorrido. E foi o que fizemos. O padre contatou discretamente autoridades responsáveis para interceder pelo caso específico para que aquele senhor pudesse reaver seus bens. Esperei a minha vez, tomei o microfone e me dirigi ao subprefeito da Sé e ao secretário dos direitos humanos da cidade de São Paulo. Antes de mais nada, educadamente, elogiei o evento, enfatizando o quão era imprescindível dar voz àquela população tão marginalizada e vulnerável. Após, narrei a cena de atrocidades contra aquele Senhorzinho, que seus pertences estavam apreendidos por uma ação conjunta da Polícia Militar e Prefeitura de São Paulo e que aquele seria o momento mais que adequado para reverter este quadro de abusos contra esta população. Neste momento, consegui ler nos lábios do Subprefeito da Sé para eu não me preocuparpois os pertences daquele Senhorzinho seriam devolvidos imediatamente para ele. E então, parei, interiorizei aquele discurso direcionado e silencioso e respondi. Pois bem, Sr. Subprefeito, a situação deste Senhorzinho será resolvida, hoje. Amanhã ele pode ser vítima novamente desta mesma ação, certo? Além disso, e os demais moradores, como ficarão? Continuarão com seus pertences sendo recolhidos arbitrariamente? Até quando? Esta ação configura crime de roubo contra esta população. Portanto, já que este é o momento adequado para questionamentos, intervenções e propostas de efetivas mudanças para esta população em situação de rua, gostaria de propor que este tipo de atrocidade tivesse um fim imediato, que esta tal de portaria/decreto municipal que eu, por sinal, desconheço completamente, fosse revogada imediatamente, sob pena desta população continuar sendo constantemente violada e desrespeitada, dada sua vulnerabilidade. Só para concluir, na sacola do Senhorzinho havia um marmitex, mantas, blusas e casacos e hoje o termômetro diz que a temperatura máxima na capital não passará dos 15ºC e a madrugada será fria. Como é que isso é possível? Agradeço muito a atenção e espero, verdadeiramente, que este pedido seja acolhido imediatamente.

Poucas palavras, muita emoção e confusão naquele momento, mas a mensagem principal foi transmitida e não poderia deixar de ser, diante do ocorrido. O que fizemos foi pouco, nós sabemos, afinal, ter os pertences recolhidos é apenas uma das inúmeras violências que esta população está sujeita. No entanto, podemos dizer que não nos calamos diante daquela injustiça e procuramos reverter ao menos a atrocidade que nossos olhares conseguiram flagrar.

Ademais, muitos moradores falaram e gritaram (com intensidade, ousadia e coragem) com determinação e desejo de serem autores de suas próprias histórias. Esta fala, apesar de vir de um lugar diferente (daquela que nunca foi subjugada nem tampouco submetida a ter que dispor de seus pertences para averiguação), ecoou com intensidade, pois falava da verdade vivida cotidianamente por muitos que aplaudiram por se identificar e se mostrarem agraciados pela oportunidade de muito mais do que apenas serem ouvidos, mas sim por serem vistos.

Pois é, o Senhorzinho recuperou sua sacola e junto com ela tudo o que talvez lhe restou desta vida, um pouco de dignidade e esperança. E nós, saímos de lá aliviadas, por um lado, ao ter sanado uma ilegalidade pontual, mas extremamente perturbadas por saber que, ao menos nos próximos dias, meses, quiçá anos, aquela realidade permanecerá, até que alguma providência de fato seja tomada.

Por isso, os próximos passos devem ser dados. Comparecer na secretaria de direitos humanos e verificar quais medidas que serão tomadas frente as falas e reivindicações apresentadas na roda de diálogo do dia 20/08/13 e, principalmente, se a decisão (portaria ou decreto) que legitima o recolhimento arbitrário dos pertences de moradores de rua foi revogada (ou, ao menos, suspensa). De modo contrário, o caminho mais plausível será entrar em contato com os movimento pró população em situação de rua e ingressar no judiciário paulista contra este recolhimento compulsório (se é que já não há nada em andamento), a exemplo do que ocorreu em Belo Horizonte. O Tribunal de Justiça mineiro acolheu o recurso elaborado pelo Coletivo Margarida Alves de assessoria popular para confirmar a liminar já concedida e proibir que os agentes públicos municipais (Fiscalização e Guarda) e estaduais (Polícia Militar) recolham compulsoriamente os pertences pessoais da população em situação de rua, sob pena de execução da multa prevista no acórdão e responsabilização dos agentes públicos envolvidos (clique aqui, para mais detalhes sobre a decisão).

O dia 11 de julho de 2013, então, passou a ser uma data histórica para a população em situação de rua de Belo Horizonte, já que a decisão determinou que a Prefeitura de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais cessassem as violações de Direitos Humanos desta população.

E, por aqui? Quando será o momento histórico que a capital mais “rica” do país (São Paulo, 1º lugar no ranking do IBGE/2010) dará um basta a este tipo de atrocidade contra a população em situação de rua? Enquanto a resposta é obscura, a luta será certa. Mobilizaremos interessados, nos juntaremos aos movimentos que apoiam a causa, não descansaremos e nem deixaremos que a roda de diálogo tão representativa e autêntica configure um mero e convencional “blá blá blá”.

Natália Macedo Sanzovo é Mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada (OAB/SP 290.884). Coordenadora-adjunta do Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade (GDUCC), atividade de extensão universitária da FDUSP. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados de Escolas Penais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos avançados sobre as Modernas Tendências do Delito, coordenado pelo Professor Dr. Alexis de Couto Brito, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Monitora bolsista do Estágio Supervisionado em Docência, do Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) da FDUSP.