O uso de drogas entre os brasileiros é cada vez mais alarmante e tem
sido causa direta da violência no nosso país. Na tentativa de deter o alto
consumo de substâncias psicoativas o poder público apresenta diversas
iniciativas voltadas para o atendimento ao dependente químico. A última
proposta foi lançada no mês de maio no Estado de São Paulo: o Cartão Recomeço.
O benefício consiste em um crédito financeiro destinado mensalmente para a
recuperação do dependente de drogas, contudo diversos questionamentos têm
surgido acerca da eficácia do programa.
Na entrevista a seguir a advogada e especialista com experiência de mais
de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e
Delinqüência Juvenil, Dra. Conceição Cinti, faz uma análise aprofundada da
iniciativa, apresentando os principais entraves detectados e oferecendo
sugestões para que o programa alcance os objetivos almejados.
Lançado recentemente, o programa Cartão Recomeço visa oferecer um
crédito financeiro para dependentes químicos que voluntariamente busquem se
recuperar da dependência química. Considerando a vasta experiência que a
senhora tem na recuperação de dependentes de drogas quais os principais méritos
e as principais falhas observadas no programa?
Conceição Cinti - Sem dúvida há muitos méritos nessa
iniciativa. Embora seja obrigação do Governo empreender todos os esforços,
dentre eles a dotação de verba pública em quantidade suficiente
para garantir a saúde das pessoas de baixa renda, o
‘Cartão Recomeço’ também simboliza ‘bandeira branca’ entre a
Comunidade Terapêutica (CT) e a Comunidade Científica, que sempre
criticou severamente a metodologia usada pelas CTS, que apesar de não
dispensarem os recursos da ciência na cura do dependente químico tem no
Poder de Deus e seus ensinamentos a coluna mestra dos seus Programas de
Restauração/Recuperação de Dependentes em SPA. A liberação do Cartão
Recomeço também é muito relevante porque é o reconhecimento oficial
do Governo, da comunidade científica de que é possível a Restauração de
Pessoas Dependentes, o que antes só era admitido pelas Comunidades
Terapêuticas. Com certeza esse é o maior legado do Cartão Recomeço, pois
leva a esperança às pessoas que se julgavam irremediavelmente sem cura. O resto
virá como consequência. Entretanto, esse assunto de Restauração de Vidas
de Pessoas dependentes de drogas é considerado delicadíssimo e ainda não
pacífico, e por essa razão é preciso muita cautela na sua gestão para não
comprometermos esse significativo avanço após décadas de indiferença,
descaso, descrédito por parte daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Quanto
às falhas também são muitas, mas citarei apenas as cinco que julgo
mais comprometedoras: 1)Exclusão de crianças e adolescentes quando sabemos
que há uma grande quantidade de meninos e meninas morrendo todos os dias sem a
assistência necessária a que têm direito; 2) O Cartão Recomeço deve
ser estendido a todos e não deve ser condicionado apenas ao dependente que
procura ajuda, afinal de contas esse é exceção pois precisamos levar em conta
que um dependente de crack raramente buscará ajuda; 3) Não há como recuperar
pessoas com data pré-determinada; 4) O recurso liberado é insuficiente para
atender as necessidades básicas do enfermo por drogas; 5) A família é
codependente, e excluí-la desse acolhimento/atendimento é um contra
senso que poderá comprometer o processo de reabilitação do
dependente.
Qual a sua avaliação acerca do valor destinado aos beneficiados pelo
Cartão Recomeço e do prazo de seis meses para o tratamento do mesmo, levando em
consideração as reais necessidades de um dependente químico em especial dos
usuários de crack?
Conceição Cinti - Não há como recuperar dependentes
químicos no prazo de seis meses, conforme é proposto pela equipe de coordenação
do Cartão Recomeço. As Comunidades Terapêuticas que detém o Know How
em recuperação de pessoas dependentes e também a Comunidade Científica sabem
que a restauração de pessoas é complexa e que esse tipo de paciente,
principalmente o dependente de crack, está sujeito a inúmeras recaídas. As
CTS em regra trabalham com um prazo mínimo de nove meses a um
ano de internação (isso sem falarmos nos cuidados pós-alta. Também o valor
destinado para cobrir as despesas desse paciente nos inquieta deixando dúvidas
se a proposta governamental é de fato séria, ou se trata de mais uma
caçoada com as pessoas de baixa renda. Faça as contas você mesmo: R$
1.350,00 por mês, significa 40 reais por dia. O mesmo que é cobrado
por uma diária num hotel de 5ª categoria com direito apenas a café e pão.
Já um doente desse porte requer cuidados especiais intermitentes e
multidisciplinares para que as agressões psicoemocionais e físicas
sofridas ao longo da dependência sejam superadas e a saúde como um todo seja
restabelecida.
Sabemos que a iniciação no uso de drogas tem
começado cada vez mais cedo e que o número de crianças e adolescentes
dependentes químicos é cada vez maior. Contudo, o programa Cartão Recomeço não
tem como público alvo a população infanto-juvenil. Como a senhora avalia a
exclusão de meninos e meninas do programa?
Conceição Cinti – Considero gravíssima
principalmente porque a epidemia pela qual passamos está atrelada
principalmente à dependência de crack que provoca de forma veloz e devastadora
uma desestruturação/destruição física, psicoemocional e mental. É grande o
número de mortos e muitos deles são meninos e meninas. E o pior, esse
extermínio de crianças e adolescentes, tanto pelas seqüelas na saúde como pela
violência gerada pelo uso de drogas, vem ocorrendo há décadas e ainda não
dispomos de um programa específico nem de espaços físicos adequados para
acolher e tratar a demanda dessa parcela da população.
De que forma a proposta das Comunidades Terapêuticas poderia contribuir
para que o programa Cartão Recomeço alcance o sucesso na reabilitação dos
dependentes químicos e consequentemente reduza a violência gerada muitas vezes
pelo elevado uso de drogas?
Conceição Cinti - À medida que as Comunidades
Terapêuticas tenham de fato autoridade/liberdade para intervir elas irão dar
grande contribuição ao processo de recuperação de dependentes. Lógico que essa
intervenção não exclui a fiscalização pelas autoridades competentes para
evitar possível violação de direitos constituídos e amparados por lei. Também
não podemos nos dar ao luxo de continuar a fechar comunidades terapêuticas (O
Estado sempre atuou com intolerância na cobrança do desempenho das CT, ou seja,
do 3º Setor que é ocaso da maioria das CTS). Enquanto o Estado
gestor banaliza e põe em risco a vida das pessoas sobre sua tutela, fica
aqui uma sugestão: Não podemos nos dar ao luxo de sair fechando as
Comunidades Terapêuticas, mesmo aquela que não está dentro dos padrões da
Anvisa. Ao invés de fechá-la, sugiro um investimento para que a mesma seja
equipada no que precisar porque com certeza esses espaços se tornaram, valiosos
e muito irão contribuir para reinserir seres humanos e cidadãos de forma digna na
sociedade.
No que diz respeito à prevenção ao uso de drogas,
como a senhora avalia as políticas públicas executadas no Brasil e em que nível
elas estão conseguindo impedir o crescimento da drogadição em especial entre a
parcela mais vulnerável da sociedade?
Conceição Cinti - Completamente inoperantes. O
índice de reincidência no Brasil é de 70%. O Brasil muito
embora concentre no país uma plêiade dos melhores na área de propaganda e
marketing, infelizmente não tem tradição em Políticas Públicas Preventivas. Mas
precisa urgentemente implementar essas valorosas medidas protetivas e também as
restaurativas em razão da epidemia que estamos vivenciando. Afinal de contas,
sabemos que a prevenção ainda é a melhor saída para evitar qualquer problema
seja ele de ordem social ou não.
Na sua opinião, como seria o tratamento ideal para a recuperação de
dependentes químicos? Que sequência de atendimento os programas devem adotara
fim de resgatar e ressocializar o indivíduo enquanto ser humano e cidadão?
Conceição Cinti - Todo programa sério tem que ter começo
meio e fim. Cada fase tem um objetivo específico, mas todas
elas fazem parte de um todo. No caso do Programa de Restauração de
Dependentes em SPA, temos um quarto estágio, que são os cuidados à distância no
pós-alta que deve ter a duração de três anos no mínimo. Então, poderíamos
definir assim: 1ª Fase é de acolhimento para desintoxicação e tempo de cativar
a confiança desse paciente desconfiadíssimo, que fica pouco à vontade com
pessoas estranhas e tem grande dificuldade em confiar em pessoas alheias
ao mundo em que vive. Vencida exitosamente essa fase começa o Programa
propriamente dito. Na 2ª Fase, a confiança mútua já deve estar bem definida
para que o Gestor do Programa juntamente com a equipe multidisciplinar possa
conduzir esse paciente rumo à conscientização da necessidade dele se empenhar
para realizar as mudanças de pensamentos, sentimentos e estilo de vida. A 3ª
Fase é aquela em que o recuperando já coopera e começa a trabalhar suas
dificuldades através da psicoterapia, laborterapia, da arte, da prática de
esportes, da música, da reflexão, da meditação, do entretenimento (quando é
possível do retorno a Escola ou à Faculdade) e da teoterapia, que
é o aprendizado do Poder de Deus do qual ele aprenderá a usufruir. Nesse
momento o recuperando já interage intensamente com seus familiares e também em
menor escala com a sua comunidade. Aqui os vínculos afetivos com a família e os
queridos já foram retomados e o recuperando se prepara também para retomar sua
vida, ser seu próprio gestor, se autodeterminar e ser o protagonista da
sua vida e da reconstrução do seu futuro. Obviamente que consciente e pronto
para fazer todos os cortes e ajustes que possam lhe garantir maior segurança e
conforto e menor risco de uma recaída. Ao deixar o programa já estará frequentando
uma unidade do Núcleo de Apoio aos Toxicômanos Anônimos (NANA).
Com as atuais políticas públicas executadas pelo
poder público e aceitas passivamente pela sociedade, a senhora acha que é
possível um dependente químico recomeçar?
Conceição Cinti – Não. A metodologia utilizada pelo poder
público é completamente inadequada e não prioriza a reabilitação desse tipo de
paciente. Apesar de ainda estarmos no início de uma caminhada que sofrerá
muitos ajustes, acredito que há como reduzir o índice de drogadição no país
para patamares aceitáveis se mudarmos a atual metodologia usada pelo
Governo. Contudo, isso irá depender demais vontade política e dedicação para
criar e desenvolver programas adequados à realidade vivenciada pelo Brasil no
que se refere à situação socioeconômica da maioria dos dependentes químicos, ao
tráfico de drogas, à violência e a outras questões diretamente relacionadas à
drogadição.