quarta-feira, 12 de junho de 2013

Cartão Recomeço – Entrevista



O uso de drogas entre os brasileiros é cada vez mais alarmante e tem sido causa direta da violência no nosso país. Na tentativa de deter o alto consumo de substâncias psicoativas o poder público apresenta diversas iniciativas voltadas para o atendimento ao dependente químico. A última proposta foi lançada no mês de maio no Estado de São Paulo: o Cartão Recomeço. O benefício consiste em um crédito financeiro destinado mensalmente para a recuperação do dependente de drogas, contudo diversos questionamentos têm surgido acerca da eficácia do programa.

Na entrevista a seguir a advogada e especialista com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil, Dra. Conceição Cinti, faz uma análise aprofundada da iniciativa, apresentando os principais entraves detectados e oferecendo sugestões para que o programa alcance os objetivos almejados.

Lançado recentemente, o programa Cartão Recomeço visa oferecer um crédito financeiro para dependentes químicos que voluntariamente busquem se recuperar da dependência química. Considerando a vasta experiência que a senhora tem na recuperação de dependentes de drogas quais os principais méritos e as principais falhas observadas no programa?

Conceição Cinti -  Sem dúvida há muitos méritos nessa iniciativa. Embora seja obrigação do Governo empreender todos os esforços, dentre eles a dotação de verba  pública em quantidade suficiente para  garantir a saúde das pessoas de baixa renda, o ‘Cartão Recomeço’ também simboliza  ‘bandeira branca’ entre a Comunidade Terapêutica (CT) e a Comunidade Científica, que sempre criticou severamente a metodologia usada pelas CTS, que apesar de não dispensarem os recursos da ciência na cura do dependente químico tem no Poder de Deus e seus ensinamentos a coluna mestra dos seus Programas de Restauração/Recuperação de Dependentes em SPA.  A liberação do Cartão Recomeço também é muito relevante porque é o reconhecimento  oficial do Governo, da comunidade científica de que é possível a Restauração de Pessoas Dependentes, o que antes só era admitido pelas Comunidades Terapêuticas. Com certeza esse é o maior legado do Cartão Recomeço, pois leva a esperança às pessoas que se julgavam irremediavelmente sem cura. O resto virá como consequência. Entretanto, esse assunto de Restauração de Vidas de Pessoas dependentes de drogas é considerado delicadíssimo e ainda não pacífico, e por essa razão é preciso muita cautela na sua gestão para não comprometermos esse significativo avanço após décadas de indiferença, descaso, descrédito por parte daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Quanto às falhas também são muitas, mas citarei apenas as cinco que julgo mais comprometedoras: 1)Exclusão de crianças e adolescentes quando sabemos que há uma grande quantidade de meninos e meninas morrendo todos os dias sem a assistência necessária a que têm direito; 2) O Cartão Recomeço deve ser estendido a todos e não deve ser condicionado apenas ao dependente que procura ajuda, afinal de contas esse é exceção pois precisamos levar em conta que um dependente de crack raramente buscará ajuda; 3) Não há como recuperar pessoas com data pré-determinada; 4) O recurso liberado é insuficiente para atender as necessidades básicas do enfermo por drogas; 5) A família é codependente, e excluí-la desse acolhimento/atendimento é um contra senso que poderá comprometer o processo de reabilitação do dependente.               

Qual a sua avaliação acerca do valor destinado aos beneficiados pelo Cartão Recomeço e do prazo de seis meses para o tratamento do mesmo, levando em consideração as reais necessidades de um dependente químico em especial dos usuários de crack?

Conceição Cinti - Não há como recuperar dependentes químicos no prazo de seis meses, conforme é proposto pela equipe de coordenação do Cartão Recomeço. As  Comunidades Terapêuticas que detém o Know How em recuperação de pessoas dependentes e também a Comunidade Científica sabem que a restauração de pessoas é complexa e que esse tipo de paciente, principalmente o dependente de crack, está sujeito a inúmeras recaídas. As CTS em regra  trabalham com um prazo mínimo de nove meses a um ano de internação (isso sem falarmos nos cuidados pós-alta. Também o valor destinado para cobrir as despesas desse paciente nos inquieta deixando  dúvidas se a proposta governamental é de fato séria, ou se trata de  mais uma caçoada com as pessoas de baixa renda. Faça as contas você mesmo: R$ 1.350,00  por mês, significa 40 reais por dia. O mesmo que é cobrado por uma diária num hotel de 5ª categoria com direito apenas a café e pão. Já um doente desse porte requer cuidados especiais intermitentes e multidisciplinares para que as agressões psicoemocionais e físicas sofridas ao longo da dependência sejam superadas e a saúde como um todo seja restabelecida. 

 

Sabemos que a iniciação no uso de drogas tem começado cada vez mais cedo e que o número de crianças e adolescentes dependentes químicos é cada vez maior. Contudo, o programa Cartão Recomeço não tem como público alvo a população infanto-juvenil. Como a senhora avalia a exclusão de meninos e meninas do programa?


Conceição Cinti – Considero gravíssima principalmente porque a epidemia pela qual passamos está atrelada principalmente à dependência de crack que provoca de forma veloz e devastadora uma desestruturação/destruição física, psicoemocional e mental. É grande o número de mortos e muitos deles são meninos e meninas. E o pior, esse extermínio de crianças e adolescentes, tanto pelas seqüelas na saúde como pela violência gerada pelo uso de drogas, vem ocorrendo há décadas e ainda não dispomos de um programa específico nem de espaços físicos adequados para acolher e tratar a demanda dessa parcela da população.
        
De que forma a proposta das Comunidades Terapêuticas poderia contribuir para que o programa Cartão  Recomeço  alcance o sucesso na reabilitação dos dependentes químicos e consequentemente reduza a violência gerada muitas vezes pelo elevado uso de drogas?

Conceição Cinti - À medida que as Comunidades Terapêuticas tenham de fato autoridade/liberdade para intervir elas irão dar grande contribuição ao processo de recuperação de dependentes. Lógico que essa intervenção não exclui a fiscalização pelas autoridades competentes para evitar possível violação de direitos constituídos e amparados por lei. Também não podemos nos dar ao luxo de continuar a fechar comunidades terapêuticas (O Estado sempre atuou com intolerância na cobrança do desempenho das CT, ou seja, do 3º Setor que é ocaso da maioria das CTS). Enquanto o Estado gestor banaliza e põe em risco a vida das pessoas sobre sua tutela, fica aqui uma sugestão: Não podemos nos dar ao luxo de sair fechando as Comunidades Terapêuticas, mesmo aquela que não está dentro dos padrões da Anvisa. Ao invés de fechá-la, sugiro um investimento para que a mesma seja equipada no que precisar porque com certeza esses espaços se tornaram, valiosos e muito irão contribuir para reinserir seres humanos e cidadãos de forma digna na sociedade.
  
No que diz respeito à prevenção ao uso de drogas, como a senhora avalia as políticas públicas executadas no Brasil e em que nível elas estão conseguindo impedir o crescimento da drogadição em especial entre a parcela mais vulnerável da sociedade?

Conceição Cinti - Completamente inoperantes. O índice de reincidência no Brasil é de 70%.   O Brasil muito embora concentre no país uma plêiade dos melhores na área de propaganda e marketing, infelizmente não tem tradição em Políticas Públicas Preventivas. Mas precisa urgentemente implementar essas valorosas medidas protetivas e também as restaurativas em razão da epidemia que estamos vivenciando. Afinal de contas, sabemos que a prevenção ainda é a melhor saída para evitar qualquer problema seja ele de ordem social ou não.  

Na sua opinião, como seria o tratamento ideal para a recuperação de dependentes químicos? Que sequência de atendimento os programas devem adotara fim de resgatar e ressocializar o indivíduo enquanto ser humano e cidadão?

Conceição Cinti - Todo programa sério tem que ter começo meio e fim. Cada fase tem um objetivo específico, mas todas elas fazem parte de um todo. No caso do Programa de Restauração de Dependentes em SPA, temos um quarto estágio, que são os cuidados à distância no pós-alta que deve ter a duração de três anos no mínimo. Então, poderíamos definir assim: 1ª Fase é de acolhimento para desintoxicação e tempo de cativar a confiança desse paciente desconfiadíssimo, que fica pouco à vontade com pessoas estranhas e tem grande dificuldade em confiar em pessoas alheias ao mundo em que vive. Vencida exitosamente essa fase começa o Programa propriamente dito. Na 2ª Fase, a confiança mútua já deve estar bem definida para que o Gestor do Programa juntamente com a equipe multidisciplinar possa conduzir esse paciente rumo à conscientização da necessidade dele se empenhar para realizar as mudanças de pensamentos, sentimentos e estilo de vida. A 3ª Fase é aquela em que o recuperando já coopera e começa a trabalhar suas dificuldades através da psicoterapia, laborterapia, da arte, da prática de esportes, da música, da reflexão, da meditação, do entretenimento (quando é possível do retorno a Escola ou à Faculdade) e da  teoterapia,  que é o aprendizado do Poder de Deus do qual ele aprenderá a usufruir.  Nesse momento o recuperando já interage intensamente com seus familiares e também em menor escala com a sua comunidade. Aqui os vínculos afetivos com a família e os queridos já foram retomados e o recuperando se prepara também para retomar sua vida, ser seu próprio gestor, se autodeterminar e ser o protagonista da sua vida e da reconstrução do seu futuro. Obviamente que consciente e pronto para fazer todos os cortes e ajustes que possam lhe garantir maior segurança e conforto e menor risco de uma recaída. Ao deixar o programa já estará frequentando uma unidade do Núcleo de Apoio aos Toxicômanos Anônimos (NANA).

Com as atuais políticas públicas executadas pelo poder público e aceitas passivamente pela sociedade, a senhora acha que é possível um dependente químico recomeçar?


Conceição Cinti – Não. A metodologia utilizada pelo poder público é completamente inadequada e não prioriza a reabilitação desse tipo de paciente. Apesar de ainda estarmos no início de uma caminhada que sofrerá muitos ajustes, acredito que há como reduzir o índice de drogadição no país para patamares aceitáveis se mudarmos a atual metodologia usada pelo Governo. Contudo, isso irá depender demais vontade política e dedicação para criar e desenvolver programas adequados à realidade vivenciada pelo Brasil no que se refere à situação socioeconômica da maioria dos dependentes químicos, ao tráfico de drogas, à violência e a outras questões diretamente relacionadas à drogadição.  







terça-feira, 11 de junho de 2013

Brasil constrói presídios; Coréia do Sul expande educação

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no luizflaviogomes.atualidadesdodireito.com.br 

O debate sobre a redução da maioridade penal, que tanto emociona o senso comum do rebanho bovino (esta última locução é de Nietzsche) e de seus pastores (legislativos, políticos, judiciais, religiosos, midiáticos etc.), nos leva, naturalmente, a comparar o Brasil com a Coréia do Sul. 

Em 2014 o Brasil sediará a Copa do Mundo de Futebol e vai mostrar para o mundo todo o quanto é precária nossa infraestrutura. Estádios, aeroportos, transportes, estradas, hotéis, comunicações etc., tudo pode nos envergonhar. No mesmo ano a Coréia do Sul vai abolir os livros de papel em todas as suas escolas: 100% dos alunos sul-coreanos usarão tablets eletrônicos. 

Um programa de 2 bilhões de dólares conectará todos os alunos da escola primária na internet. Em 2015 será a vez dos alunos da escola secundária. Na América Latina, neste item, destaque é o Uruguai, que tem um computador para cada aluno da escola primária. 

A Coréia do Sul fez sua aposta na educação. O Brasil, no crescimento das prisões, que vão agora explodir com os menores lá dentro. A Coréia do Sul está entre as campeãs em avanços educacionais. O Brasil é o campeão mundial (absoluto) no encarceramento de pessoas. Nos últimos vinte anos (1990-2010), houve aumento de mais de 470% (contra 77% dos Estados Unidos). A Coréia do Sul está educando, o Brasil está prendendo (e “educando” o interno para a criminalidade organizada). 

Enquanto a Coréia do Sul compra tablets para seus alunos, o Brasil está construindo presídios, ou melhor, campos de concentração e de treinamento (para melhorar a performance da crueldade dos presidiários). 

De acordo com levantamento do nosso Instituto Avante Brasil, a quantidade de detentos não-condenados nas cadeias brasileiras subiu 1.253%, de 1990 a 2010. Já o número de definitivos cresceu 278%. Quarenta e dois por cento (42%) dos detidos são provisórios. Em 1990 esse índice era de 18%.

Pesquisa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) demonstra que a Coréia do Sul é uma das campeãs mundiais no uso de computadores pelos estudantes. No ensino médio, um para cada 7 estudantes. No Brasil, 1 para 33 alunos. 

De acordo com o exame mundial PISA (que avalia o nível dos estudantes), no item compreensão de leitura pelos alunos de 15 anos, a Coréia do Sul ocupa o segundo lugar. O Brasil é um dos últimos colocados. Está na frente do Zimbábue, é certo.

Em 2015 a Coréia do Sul já não estará gastando nada com papel, impressão e distribuição de materiais escolares: todo o conteúdo do curso estará disponível em tablets eletrônicos para os alunos. O Brasil, neste ano, em contrapartida, já terá alcançado a marca de (mais ou menos) 700 ou 800 mil presidiários. 

Quantas reformas penais o legislador brasileiro fez, de 1940 a 2012? 136 reformas no Código Penal. Diminui a criminalidade no Brasil? Nada. Em 1980 tínhamos 11 assassinatos para 100 mil habitantes. Em 2010, 27.4 mortos para 100 mil habitantes. Todos os indicadores criminais aumentaram. Em lugar da educação, jogamos nossa energia em reformas penais e encarceramento massivo. O resultado é o aumento do rebanho bovino e dos analfabetos. Por falta de informação, que raramente é dada pela mídia, chegou-se a 93% de apoio (Datafolha) para a redução da maioridade penal. 

Estudo realizado pelo Instituto Avante Brasil verificou (a partir dos dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que no período compreendido entre 1994 e 2009 houve uma queda de 19,3% no número de escolas públicas do país; em 1994 haviam 200.549 escolas públicas contra 161.783 em 2009. 

No mesmo período o número de presídios aumentou 253%. Em 1994 eram 511 estabelecimentos; este número mais que triplicou em 2009, com um total de 1.806 estabelecimentos prisionais. Hoje está perto de 2 mil e 500 presídios.

Em 1950, 63% da força de trabalho brasileira estava na agricultura; 20% em serviços e 17% na Indústria. Na Coréia do Sul, no mesmo ano, 60% da força de trabalho estava na agricultura, hoje é menos de 10%; em serviços, de 28% subiu para 63% (hoje). A produtividade desse setor, na Coréia (conforme Ferreira e Fragelli, Valor Econômico de 22.05.13, p. A15), cresceu continuamente a 2% ao ano. A Coréia, mais pobre que o Brasil em 1950, é hoje duas vezes mais rica, em termos de renda per capita. Em 1960 o PIB per capita lá era de 900 dólares; hoje é de 32 mil dólares (Brasil, 10 mil). 

Em 1960 tínhamos (Brasil e Coréia) 35% de analfabetos. Hoje ainda temos 13% (sem considerar os analfabetos funcionais) e eles têm ZERO. Apenas 18% dos jovens brasileiros estão nas universidades; na Coréia, apenas 18% estão fora da universidade. A evasão escolar no final do ensino médio, no Brasil, é de 60%; na Coréia é de 3%. A Coréia do Sul, hoje, é uma locomotiva mundial. O Brasil é um grande presídio, cheio de analfabetos, sobretudo funcionais. 

A que se deve tanta diferença entre os dois países?...

Nos últimos 50 anos, enquanto a Coréia do Sul investia massivamente em educação, o Brasil, atendendo, sobretudo, a pressão midiática e o populismo punitivo, gastava seus parcos recursos construindo presídios. Qual dos dois países está preparando melhor seus jovens e adolescentes para a vida futura? O jovem sul-coreano está na Universidade, o brasileiro está na Universidade do Crime: quem tem mais chance de progresso? Qual país vai crescer mais? Quem estará melhor dentro de 10 anos?

A educação não saiu dos planos governamentais, muito menos da cabeça das elites pensantes e dominantes nos países asiáticos. Entre 1950 e 1980 a escolaridade média lá cresceu quatro anos; no Brasil, um pouco mais de um ano. 

Como se vê, a brutal diferença está na relevância que se dá à educação e à qualificação profissional. Eles estão treinando os jovens em escolas duras e profícuas. Nós estamos treinando grande parte da juventude no crime organizado e nos presídios. Os desníveis, claro, são marcantes.

Enquanto o Brasil vivia sua estagnação econômica entre os anos 80 e 90, quando então começou o processo de encarceramento massivo, a Coréia não descuidava da infraestrutura, da urbanização, dos serviços públicos, da escolarização etc. 

O debate que estamos agora fazendo sobre a criminalização dos menores, que deveriam estar todos na escola até os 18 anos, comprova que o senso comum do rebanho bovino não aprendeu nada com a Coréia do Sul. Continuamos repetindo nossos clássicos erros: fechando escolas e abrindo presídios! 

O Governo, a sociedade civil, os partidos políticos e o mundo empresarial deveriam promover um sério e definitivo pacto pela educação de qualidade para todos, que começaria a produzir frutos notáveis imediatamente (não daqui a 20 anos, como afirmam os pessimistas), na medida em que todos os menores estariam fora das ruas, nas escolas, das 8 às 18h, em tempo integral, desde tenra idade até os 18 anos (com algumas exceções controladas pelo Ministério Público, a partir dos 16 anos). 

O Brasil, perdido em discussões sobre como aumentar o número de presidiários, fechando escolas para construir mais presídios, sem sombra de dúvida, é um país que se apresenta mundialmente de ponta-cabeça: DESORDEM (geral: na economia, no controle social, no processo de urbanização etc.), PROGRESSO (sétima economia do mundo) e BARBÁRIE (isso é o que deveria estar escrito na nossa bandeira). 

Estamos longe de chegar ao ser humano do grande meio-dia, como diz Nietzsche. Estamos muito mais para o primata das 8h da manhã, que para o Super-humano do entardecer. Que pena! Quanta oportunidade perdida! Quantas gerações futuras perdidas! Quantas vidas perdidas! Quanto analfabetismo! Quanto senso comum de rebanho!




domingo, 9 de junho de 2013

Redução da Maioridade Penal – um retrocesso na conquista de direito


                                                     Fonte: Internet


* Conceição Cinti.


“Se não vejo na criança uma criança é porque alguém a violentou antes. E o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado”.
Herbert de Souza (Sociólogo).
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque aceitar que meninos e meninas sejam penalizados cada vez mais cedo é fazer o que fazem as pessoas descompromissadas com o direito à vida do próximo: atacam a conseqüência mesmo sabendo que a solução é combater a causa do problema. Por que não cuidar da criança e do adolescente antes para que ele não se torne uma pessoa em conflito com a lei?
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque a adolescência é a fase de transição da infância para a vida adulta, momento que exige investimento da família, do Estado e da sociedade e nós sabemos que, com a derrocada da família, o recrudescimento do Estado e o preconceito da sociedade com os adolescentes em conflito com a lei não têm conseguido ultrapassar esses severos obstáculos.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque creio na força transformadora que há na educação, como instrumento de cidadania, justiça e humanização. Por convicção própria e como resultado da experiência de anos trabalhando nessa área, acredito que nenhum tipo de cadeia pode superar a educação e contribuir para a reintegração de um adolescente em conflito com a lei na sociedade.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque sabemos estar estatisticamente comprovado que os adolescentes em conflito com a lei são, em sua maioria, negros, pardos, de baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, além daqueles em situação de miséria. Pessoas que foram expostas, desde a mais tenra idade, a todo tipo de violência e que nunca tiveram seus direitos mais elementares garantidos, o que por si só já os torna potenciais vítimas do Estado e da sociedade.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque acredito no potencial da criança e do adolescente quando ele é orientado e incluído como ator do seu próprio projeto de vida, quando lhe dão oportunidade de participar em pé de igualdade com os demais como protagonista de sua história com respeito e dignidade a seu momento de maior fragilidade, que é o momento em que ele inicia sua própria construção e desenvolvimento psicoemocional, social e físico.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque me recuso a repetir esse discurso de uma sociedade revanchista e preconceituosa, corroborada pela mídia populista que prossegue levianamente fomentadora da violência que tem vitimado meninos e meninas em confronto com a lei e contribuído para a formação de uma consciência social perversa ancorada unicamente na repressão, como se o sistema prisional fosse a solução de uma problemática social tão complexa.
Impunidade?
Aos que questionam sobre uma possível sensação de impunidade quando se trata de atos praticados por adolescentes, devemos alertar que o artigo 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já prevê medidas socioeducativas para menores de 18 anos que praticam atos infracionais (crimes ou contravenções penais).
Assim, um adolescente com 12 anos de idade, ainda em fase de desenvolvimento psicológico, emocional e intelectual, pode passar por todo processo pelo qual um adulto passar ao cometer um crime, ou seja, esse adolescente será internado (preso), processado, sancionado (condenado) e, se for o caso, cumprir a medida (pena) em estabelecimentos educacionais, que são verdadeiros presídios.
É imprescindível ressaltar que todas as medidas previstas no artigo 112 do ECA (internação em estabelecimento educacional, a inserção em regime de semiliberdade, a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade) são iguais às sanções previstas no Código penal e atribuída aos adultos. Dessa forma, a prisão é igual à internação do adolescente; o regime semi-aberto é semelhante à inserção do adolescente em regime de semiliberdade; a prisão albergue ou domiciliar se parece com a liberdade assistida prevista no ECA; e a prestação de serviços à comunidade é idêntica para os adolescentes em conflito com a lei.
Não podemos, no entanto, desconsiderar que ao criar o Estatuto da Criança e do Adolescente houve uma tentativa de tratar esses meninos e essas meninas em conflito com a lei de forma diferenciada do adulto que praticou crime, reconhecendo nele um sujeito de direitos em fase de desenvolvimento e que merece ser tratado com prioridade absoluta. O problema está exatamente na forma como essas medidas socioeducativas estão sendo aplicadas, pois na prática elas se tornam verdadeiras penas ineficazes e inúteis para a ressocialização do adolescente.
Logo, o mais importante no momento não é reduzir a maioridade penal e sim fazer com que o ECA seja efetivamente cumprido pelos gestores das unidades de medidas socioeducativas, espaço destinado na teoria à ressocialização dos adolescentes. Nesse sentido, se faz necessário que as medidas socioeducativas sejam rediscutidas, aperfeiçoadas e cumpridas de modo a evitar um efeito contrário à recuperação: meninos e meninas mais corrompidos por um sistema pseudo socioeducativo.
Acredito que sustentar a redução da maioridade penal é abrir mais uma brecha para permitir decisões subjetivas e com isso colocar em risco a vida dos adolescentes pobres e negros, que nesse país são prisionáveis, torturáveis e mortáveis (conforme bem ilustra o jurista Luiz Flavio Gomes).
A violência por parte dos adolescentes existe, mas ela sempre esteve aquém da violência praticada contra esses meninos e meninas colocados em instituições que na realidade não recuperam nem ressocializam. Não podemos simplesmente colocá-los em centros que são verdadeiras cadeias, que transformam os jovens em bandidos muito mais perigosos. Segundo dados do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinqüente (ILANUD), os atos infracionais realizados por adolescentes não chegam a responder nem por 10% dos crimes praticados no Brasil. Além disso, de todos os atos infracionais praticados por adolescentes, somente 8% podem ser interpretados como crimes contra a vida. A grande maioria dos atos infracionais (cerca de 75%) é contra o patrimônio, sendo que 50% são furtos. Dessa maneira é um grande engano argumentar a favor da redução da idade penal como estratégia para acabar com a criminalidade.
Ora, não podemos generalizar para efeito de endurecimento das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes em conflito com a lei tomando como base os extremos, como os psicopatas ou sociopatas; ou casos isolados que ganham grande repercussão, como os casos do menino João Hélio, assassinado por um adolescente em 2007. Isso seria um contrassenso, um grande equívoco. Casos isolados não devem de forma alguma nortear as medidas socioeducativas. Medidas adotadas em meio à comoção popular podem resultar em injustiças que poderiam macular ainda mais a imagem do Brasil como um país que não assiste a população infanto-juvenil, ou seja, não cuida do futuro da nação, e mais do que isso, permite que meninos e meninas sejam torturados e mortos.
Violência
Não podemos colocar a culpa da criminalidade nos adolescentes, pois eles são vítimas de uma sociedade que não leva em conta a dignidade da pessoa humana. É necessário mais responsabilidade por parte dos gestores públicos com políticas de proteção à infância e à adolescência, e de alcance à família. É preciso que a família, a comunidade, a sociedade em geral e o Poder Público assegurem proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e que possibilitem à família condições de direcionar seus filhos rumo à cultura da paz.
Enganam-se os que pensam que é a inimputabilidade dos adolescentes que os atrai para o cometimento de atos infracionais. É a falta de oportunidades, de expectativas para um futuro melhor que os leva para este caminho. Somente por meio de políticas públicas inclusivas que abranjam saúde e educação, bem como um policiamento responsável e comunitário, será possível avançar na construção de uma sociedade justa e solidária.
Maioria favorável
Há sim uma maioria favorável à redução da maioridade penal. São geralmente pessoas que se deixam influenciar pela mídia populista e criticam duramente o adolescente em confronto com a lei. Defendem não apenas medidas mais duras, mas há até aqueles que se solidarizam com o modelo americano, vigente em alguns poucos estados daquele país, que insanamente prevê prisão perpétua sem direito à progressão de regime para essa categoria de meninos e meninas, o que seria o mesmo que admitirmos a tese lombrosiana que não encontrou ancoragem nem na ciência nem no direito penal pátrio.
Aceitar esse fato seria um contrassenso, seria banalizar e reduzir uma questão de tamanha complexidade a situações que na verdade são mais consequência do descaso do Poder Público com a criança e o adolescente e que têm provocado o que venho denominando de “O Holocausto Brasileiro”, uma verdade que há décadas vem vitimando meninos e meninas e que precisa ser contido, pois nunca será superado através de duras penas.
Ademais, não podemos deixar de mencionar que a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, contraria o artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, que estabelece que não pode ser alterado (já que é cláusula pétrea), além de desrespeitar o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Segundo esse tratado, os adolescentes devem ser processados separadamente dos adultos. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado tem o dever de assegurar proteção integral a Criança e ao Adolescente.
Portanto, reduzir a maioridade penal seria o mesmo que jogar precocemente os adolescentes em conflito com a lei na “Universidade do Crime”, uma vez que é do conhecimento público a deterioração do sistema penal brasileiro. Na verdade, o que deve nortear esse debate acerca dos adolescentes em conflito com a lei é uma maneira mais justa de promover os direitos de todos os brasileiros em formação, independente de sua condição socioeconômica e étnico-cultural.

* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora dowww.educacaorestaurativa.org


sábado, 8 de junho de 2013

De como fabricamos psicanaliticamente os menores delinquentes






Luiz Flávio Gomes
De como fabricamos psicanaliticamente os menores delinquentes



Juan Pablo Mollo (psicanalista e autor do livro “Psicoanalisis y Criminología”), tradução de Débora de Almeida e notas entre colchetes de Luiz Flávio Gomes

Em razão da ímpar oportunidade (tendo em vista que o legislador brasileiro está discutindo a questão da maioridade penal), vale a pena conhecer um trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, que estamos traduzindo (e que queremos publicar ainda este ano no Brasil). Segue o texto do autor citado:
O desamparo se transforma em crime por meio do sistema penal. 
Quando as crianças fogem de seu lar e ficam nas ruas, começam um caminho difícil, sem rumo fixo, em situação de desproteção, suportando grandes privações. Como forma de defesa e subsistência, os meninos de rua organizam-se precariamente entre si, e tentam dispor de um mínimo apoio afetivo mediante a identificação comum que oferece o grupo. É evidente que os meninos de rua são altamente vulneráveis e, por isto, são uma “oportunidade” e um negócio para organizações criminais que lucram com a prostituição infantil, o tráfico de órgãos ou a exploração sexual e de trabalho dos menores etc.
 Sem uma pessoa adulta ou um “pai” que responda por eles, o grupo infantil perambula à deriva e tenta subsistir por meios lícitos e ilícitos, segundo o que encontrarem à disposição dia após dia. A mesma vulnerabilidade dos meninos torna explicável o roubo simples de carteiras, bicicletas ou celulares, que despois vendem para obter um dinheiro mínimo, gratificante em curto prazo. Com o tempo, se não são detidos e enviados a um reformatório, a associação de meninos de rua pode ser dirigida por organizações criminais dedicadas ao tráfico de drogas e outras mercadorias, ou realizar tarefas ilegais para a polícia.
 Esta breve descrição do caminho infantil à deriva é uma representação do fenômeno a partir do ponto de vista econômico-social; no entanto, existe outra lógica subjacente aos atos delitivos das crianças e adolescentes, que alcança uma dimensão afetiva: a fuga infantil intempestiva para a rua está relacionada com “ter sido deixado fora” (abandonado) por sua família de origem. Daí sua persistência em não voltar ao lar, ainda que em situações de desamparo extremo. A fuga da criança para a rua implica que “algo” insuportável lhe acontece em sua casa, e, por isto, o escape toma uma forma de precipitação, urgência subjetiva e sem referências, em direção à hostilidade de um mundo sem regras.
 Verifica-se na clínica psicanalítica que a fuga infantil é uma resposta subjetiva da criança ante uma diversidade de circunstâncias tais como a marca da rejeição, não se sentir querido, ser ferido ou explorado afetivamente, não resistir à violência ou aos conflitos familiares já intoleráveis, a morte de algum de seus pais, tios, irmãos, avós ou maior responsável etc. Assim, uma fuga desesperada, que mais é uma queda ou uma derrubada simbólica, joga-o a uma situação de desamparo e angústia pela perda de um apoio afetivo.
 O desamparo real nasce com a perda de um lugar no desejo do Outro, que não é um conceito abstrato, senão a certeza de “ser” algo para alguém concreto, neste caso um familiar ou um responsável pela criança. Em outras palavras, ter um lugar no desejo do Outro, encarnado em alguma das figuras familiares, supõe que a criança ou o adolescente é alojado, levado em consideração e sustentado, para além das palavras e das razões. Inversamente, sendo a rua o lugar dos que não têm lugar, a fuga infantil mostra bem a queda do desejo do Outro [daí a sensação de isolamento, de não pertencência].
 Por definição, ser deixado cair fora (ser abandonado) do desejo do Outro produz angústia, perda de recursos simbólicos e ações intempestivas. Logo, o salto ao vazio da rua devido à perda de um lugar não conceitual, mas real, lhe acrescenta outro desamparo mais tangível no plano social. Com efeito, a angústia pela perda de “alguém” que respondia por ele, visivelmente o deixa sem referências simbólicas e literalmente à deriva, fora das obrigações de horários e demais convenções sociais.
 Da angústia ao sistema penal
 Entretanto, não se trata da influência do ambiente físico ou social da família do menino, senão da ruptura de um “ambiente afetivo”, como causa do perambular da criança ou do jovem. Aqui, o desamparo não é social e não se trata da exclusão econômica e geográfica do marginal, mas da rejeição original e a queda subjetiva que sofre uma criança ou um jovem, para além de sua classe social.
 O abandono produz angústia e esta se transforma em ações intempestivas e inadequadas em relação às convenções sociais. Na verdade, a transformação da angústia em atos, já supõe estar fora da proteção das normas simbólicas; e por isto, tais atos inadequados constituem um chamado ao lugar perdido no desejo do Outro. As condutas antissociais de um menino de rua se dirigem a um Outro para que este responda por ele. Ou ainda, o comportamento antissocial constitui uma “chamada de atenção” porque, justamente, se perdeu a atenção de um Outro familiar.
 A partir desta perspectiva, as ações delitivas e associais do jovem delinquente constituem um modo de “golpear” as instituições sociais, suas normas e sua moral, com a finalidade consciente ou não, de ser incluído na legalidade perdida. Portanto, resulta primordial ingressar numa realidade “afetiva”, pacificadora da angústia, como condição de uma possível adaptação à legalidade social. Em outras palavras, o abandono inicial deixa o jovem como um objeto fora da lei, e por isto, seus atos delitivos esperam uma resposta do Outro para constituir-se como sujeito de uma lei. Quando não há resposta, a situação se agrava e se intensificam as atuações, incluindo-se o risco da própria vida.
 Não obstante, verifica-se na clínica psicanalítica que a certeza de ter “um lugar no desejo do Outro”, nestes casos, produz uma inclusão afetiva e social, cujo efeito é a recuperação da referência à norma. Por isso, tais atuações, que constituem uma série repetitiva de acting out, não configuram uma patologia, mas uma “zona de relação” vinculada ao desejo do Outro (Lacan). A angústia transformada em acting out, constitui uma etiologia delitiva sutil, cuja fenomenologia é ir à deriva, sem recursos simbólicos, porém em direção a entrar no cenário do mundo regrado e convencional.
 Precisamente, no início de 1900, averiguando o campo teórico clínico da criança e do adolescente, os primeiros psicanalistas já se opunham às teorias etiológicas constitucionalistas que influenciavam a criminologia da época, e rechaçavam a homologia do delinquente com as categorias psiquiátricas de psicopatas, inferiores ou perversos. Para os psicanalistas pioneiros na matéria, um ato delitivo ou uma conduta antissocial não constituía um diagnóstico, não valia por si mesma (Eissler), mas se distinguia da mera impulsividade (Blos) e respondia ao abandono (Aicchorn).
 Também, teorizavam que os conflitos que operavam na origem da tendência antissocial sobrevinham das separações prematuras e prolongadas (Bowlby), ou da carência da criança em relação a sua mãe (Winnicott). Em suma, as investigações psicanalíticas em torno da delinquência, as quais se desenvolveram no desamparo social das guerras mundiais, mantêm, hoje, toda sua vigência ante a situação de milhões de crianças e jovens que são forçados a sobreviver na rua. Os filhos da marginalização social da América Latina são os mesmos órfãos do pós-guerra europeu: jovens deixados cair fora (abandonados), que depois desencadeiam séries intermináveis de delitos e distúrbios, mostrando o objeto de descarte que são para o Outro.
 Assim, a delinquência juvenil é a materialização da angústia. As ações da criança ou jovem de rua, logicamente, terão que resultar inadequadas ou delitivas, pois sua direção inconsciente é convocar ao Outro. E precisamente, verifica-se clinicamente que os atos delitivos cedem quando a criança ou adolescente angustiado é alojado genuinamente no desejo do Outro. A delinquência juvenil é transitória e depende de uma resposta do Outro. Por exemplo, o caso de um jovem irmão que está na rua, não vai à escola, rouba, usa droga etc., e quando um tio distante, de maneira autêntica, o convidou a trabalhar numa quitanda e se encarregou dele, de pronto, o jovem respondeu plenamente, mudando rapidamente seu modo de vida anterior. O jovem retomou o colégio e deixou de roubar e se drogar, isto é, recuperou a legalidade a partir de ter a certeza de “ser” alguém para Outro.
 Mesmo expressado com extrema simplicidade, o exemplo deixa vislumbrar uma “cura” para o delinquente juvenil. Com efeito, se vindo do desamparo e do abandono primário, as transgressões à lei são tentativas angustiosas de buscar um Outro para ter onde se alojar, para além de todas as razões; então, se se oferece uma resposta adequada, uma terapêutica é possível para o ordenamento do delinquente juvenil. Sempre será uma resposta que permita a inclusão, ainda que não possa ser padronizada nem institucionalizada, pois necessita do desejo do Outro em singular; ou seja, requer do desejo singular de encarregar-se ou não, de quem, neste caso está à deriva.
 Alojar alguém no desejo do Outro não é uma operação conceitual, mas um efeito enigmático que compromete profundamente duas pessoas em nível de seus desejos. Tampouco é o significado de uma frase ou o valor das palavras, senão um efeito análogo ao súbito enamoramento. Por isso, em sentido estrito, a resposta “terapêutica” não é calculável, senão que está definida pelos efeitos concretos e reais de um “encontro” afetivo, que diminuiu a urgência e a patologia da conduta.
 Outras vezes, a marca do abandono original retorna e o jovem volta à rua e para uma tendência antissocial cada vez mais marcada. A situação de angústia se agrava com o passar do tempo e, às vezes, ao desamparado de anos, só lhe resta um lugar miserável no cárcere ou no hospital psiquiátrico, ou então suicidar-se. Tais são os extremos a que chegam as séries repetitivas de acting out, quando não há alguém que responda ao chamado.
 Indubitavelmente, nem todos os delinquentes são desamparados que atuam sem referências simbólicas. No entanto, a grande maioria dos delinquentes incluídos na subcultura criminal antes foi um jovem à deriva. Portanto, existe uma passagem do desamparo e angústia para a fixação da identidade delitiva ou criminosa. Desta forma, se a angústia se oculta atrás dos atos delitivos e sua dosificação pode produzir repentinamente uma mudança de posicionamento em relação às normas, então, a subcultura delitiva também é uma solução para a angústia.
 A passagem do desamparo ao clube criminoso constitui uma via de socialização com um aprendizado técnico e discursivo, cuja “graduação” realiza-se no cárcere, que define hierarquias. A tendência antissocial do jovem origina-se numa exclusão causal de sua família, por ter sido deixado cair fora do desejo do Outro (abandonado pelo Outro). E a subcultura subterrânea, própria da prisão, lhe oferece uma bússola para sua deriva angustiosa.
 Na subcultura criminosa são os ideais delitivos os que ordenam as ações delitivas que, neste caso, não chamam ao Outro, nem se produzem por uma transformação da angústia. O ideal delitivo é o rumo e a referência simbólica necessária para “ser” um delinquente e superar a angústia e a culpabilidade.
 Em outras palavras, o jovem que age a partir da angústia não pode se situar a partir de um ideal de referência; e inversamente, ao oferecer uma identidade, um horizonte e uma tradição, os códigos delitivos são formas simbólicas de ordenamento da delinquência. E a afiliação à subcultura e o início em uma carreira delitiva ou criminosa frequentemente se faz de duas formas, que conduzem à mesma fixação de uma identidade: o sistema penal e a criminalidade organizada. O cárcere e a máfia criminosa são dois dispositivos de transformação do abandono em identidade delitiva, que oferecem um “ser” no mundo, ali onde se “era” um resto abandonado para o desejo do Outro.
 Apesar de suas funções aparentes, o sistema penal é um eficaz aparato de reprodução da tradição criminosa. Logicamente, o acting out delitivo cessa quando o sujeito volta às normas e às identificações, para além de seu significado moral.
 Não obstante, a afiliação ao ideal delitivo não é repentina, mas sim um processo subjetivo ordenado por um grupo a que pertence. A identificação vai se assumindo paulatinamente até que se impõe, com valor de “ser” reconhecido pela comunidade delitiva ou criminosa. A busca de prestígio e a paixão pelo reconhecimento constituem uma referência ao Outro da subcultura criminosa; e, neste caso, o jovem à deriva deixa de agir por angústia e começa a atuar numa carreira criminosa que lhe traça um destino. Assim, o sistema penal soluciona a angústia do jovem abandonado, oferecendo-lhe a cultura da ilegalidade e do crime [é desta forma que nossa sociedade psicanaliticamente falando fabrica os menores delinquentes; Nietzsche quando fala da mais perigosa desaprendizagem sublinha: “Começa-se por desaprender a amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais digno de amor em si mesmo” (Aurora)].


Menoridade penal e a fuga do senso comum do rebanho bovino




Luiz Flávio GomesMenoridade penal e a fuga do senso comum do rebanho bovino


LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br
Em lugar de alterar a idade penal, por meio do legislador, melhor seria resolver o problema da violência do menor. O senso comum do rebanho bovino (a expressão é de Nietzsche) sempre apoia o legislador em mais rigor penal, porém, não percebe que ele já fez 136 reformas do Código Penal, nos últimos 72 anos, sem ter diminuído nenhum tipo de violência. Se você não gosta da sua casa e a reforma 136 vezes e ainda assim ela não lhe satisfaz, o melhor é mudar de casa. Ou seja: chega de enrolação legislativa, que sempre promete solução para o problema da criminalidade, espalhando sedativos na população irada e impotente; é chegado o momento de fugirmos do senso comum do rebanho bovino: a solução é escola obrigatória, das 8 às 18h, para todas as crianças e adolescentes, até os 18 anos.

Quando falamos de educação, o senso comum do rebanho bovino diz que isso demora 20 anos para produzir efeito. Não percebe que colocando todas as crianças e adolescentes nas escolas nós nos livramos deles nas ruas imediatamente, prontamente. Mudança da lei penal, nesse contexto, é embromação. É claro que devemos punir os menores perversos que praticam crimes violentos, ninguém duvida disso. Mas não devemos confiar na punição como único remédio para o problema. Aliás, remédio mesmo é a educação. O resto é puro paliativo, que satisfaz a ira popular do rebanho, mas não soluciona absolutamente nada. “É mais fácil construir crianças fortes do que reconstruir adultos quebrados” (Emerson Santana).



segunda-feira, 3 de junho de 2013

Urbanização e educação como agentes preventivos da violência

* Conceição Cinti. “O raciocínio é simples: País que investe em educação, não precisa de tanto presídio. Porém, país que trata a educação e seus educadores sem prioridade, apenas no discurso e não na prática (como por aqui nossos governantes são especialistas em fazer), aumenta a violência, caminha para a desigualdade social e escancara as…


Medellín, cidade colombiana que usou a urbanização para reduzir a violência

“O raciocínio é simples: País que investe em educação, não precisa de tanto presídio. Porém, país que trata a educação e seus educadores sem prioridade, apenas no discurso e não na prática (como por aqui nossos governantes são especialistas em fazer), aumenta a violência, caminha para a desigualdade social e escancara as portas para a injustiça social”. (Luiz Flávio Gomes).
A urbanização utilizada de maneira adequada pode embelezar os espaços físicos e promover o precioso “upgrade” na autoestima dos moradores de uma determinada região, podendo também ser um poderoso instrumento de segurança, já que agrega elementos importantes como uma iluminação eficaz e um bom serviço de limpeza pública, que facilitam o direito de ir e vir das pessoas.
Nesse sentido, a moradia, direito básico do cidadão, oferecida pelo Poder Público às famílias de baixa renda deveria funcionar como agente inclusivo. Contudo, lamentavelmente algumas delas não passam de verdadeiras ‘favelas oficializadas’ pois estão localizadas em áreas excluídas do meio urbanizado. Conjuntos habitacionais em diminuta metragem de área construída sobre um frágil alicerce (a um custo alto) que nem sequer permitem ao futuro proprietário sonhar com uma reforma digna.
Também não há preocupação por parte do Poder Público em preservar um espaço de uso comum para esses moradores, com estrutura adequada para a prática de esporte, arte, cultura e entretenimento. Parece até que ignoram o fato de essa ser a maior ferramenta de inclusão social, de promoção da autoestima e da cidadania, alternativas poderosíssimas de prevenção à criminalidade, que espreita com mais gula aqueles em situação de vulnerabilidade.
A dignidade com certeza também passa pelo direito à moradia, por isso é preciso empreender esforços para dotar essas áreas denominadas “Conjuntos Habitacionais” de melhorias essenciais que agreguem algum valor como, por exemplo, agências de banco cujo perfil seja atender a maioria da população, supermercados populares, farmácias, igrejas e unidades do “Sistema S” (SESI, SENAC, SENAI, SESC, etc.), que trabalham e primam pela excelência no que fazem. A solução para alavancar o desenvolvimento da população por meio da oferta de emprego e melhoria da qualidade de vida é simples, mas parece ser ignorada pelos governantes, que não criam políticas para facilitar o acesso dos investidores e empresários para que se instalem nesses locais.
Cabe ainda ao Governo oferecer serviços essenciais a esses locais, como Posto de Segurança (com veículo apropriado), Unidade Médica (com a presença de psicólogos, assistentes sociais e ambulância própria), Unidade Odontológica, capela, cemitério, telefonia pública e biblioteca. Sem falar na imprescindível arborização e serviço de limpeza pública seletiva, que além de oferecer segurança e bem estar à população, agregariam valor ao empreendimento. Tudo isso é perfeitamente factível, basta apenas vontade política.
A falta de vagas em berçários públicos nesses “Conjuntos Habitacionais” é outro fator que impede o desenvolvimento local, por muitas vezes impedir que as mães possam trabalhar sossegadas, sabendo que seus filhos estão sendo bem cuidados, alimentados e seguros. A escola pública deveria funcionar em tempo integral a fim de oferecer à criança e ao adolescente, além da grade curricular referente ao Ensino Fundamental e Médio, o ensino profissionalizante de ponta conforme demanda o mercado de trabalho.
Agindo desta forma, além de estar cumprindo seu dever para com os jovens, o Poder Público evitaria a arregimentação precoce desses meninos e meninas pelo crime organizado e reforçaria o imprescindível elo entre a escola e a família, fortalecendo ambas as instituições. Mas além de não termos uma educação de qualidade, ainda somos obrigados a assistir o Governo investir o dinheiro do povo na construção de mais presídios, ao invés de construir escolas.
Segundo estudo realizado pelo Instituto Avante Brasil (www.institutoavantebrasil.com.br) a partir dos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) houve expressiva queda na construção de escolas brasileiras entre 1994 e 2009. Há 15 anos, existiam 200.549 educandários registrados. Já em 2009, esse número caiu para 161.783. Por outro lado, o número de vagas em presídios aumentou 450%, tornando o Brasil campeão mundial neste quesito. Tínhamos em 1994 apenas 511 presídios. Em 2009, esse número saltou para 1.806. E pasmem: seria necessário o dobro ou o triplo de vagas para comportar o número de presos brasileiros, que em sua maioria são jovens, negros e pardos, de baixa renda e, quase na totalidade, não alfabetizados.
Qual o diagnóstico de um país que viu decrescer em quase 20%, em uma década e meia, o número de escolas e, no mesmo período, fez crescer em 253% o número de presídios? Essa é a pergunta de muitos especialistas, dentre eles, o renomado jurista Luiz Flávio Gomes, Doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Para ele, esse é um triste sintoma de uma grave doença social.
Ao deixar nossos jovens isolados, acompanhados apenas pela programação televisiva, eles serão assolados pela publicidade que influencia o consumo do supérfluo, quando nem o básico lhe é garantido. Terão a horrível sensação de impotência e desesperança e, por não vislumbrar nenhuma perspectiva de futuro, o descaminho se torna o rumo mais fácil de ser tomado por essa juventude frustrada.
As habitações populares, como já foi dito, ficam longe do acesso ao emprego e, portanto, os moradores das periferias são obrigados a enfrentar a tortura em que se constituiu a locomoção das pessoas de baixa renda, cada vez mais sem opção de transporte público decente. O precioso tempo que poderia ser compartilhado com a família é desperdiçado em detrimento da incapacidade física, mental e psicoemocional gerada pelo estresse. Isso tudo, somado ao preconceito, à indiferença e à injustiça imposta às pessoas de menor renda tem causado graves feridas psicoemocionais que fazem grande diferença, principalmente no comportamento dos adolescentes, que são seres em fase de desenvolvimento.
Essa falta deliberada de planejamento dos Governantes muito colaborou para o alastramento das drogas em todo o País (sendo um exemplo clássico a implosão do Carandiru e a transferência dos presos para o interior do Estado, num apelo aleatório e político que não resolveu a violência da Capital e contaminou o interior de SP, que foi pego de surpresa). Fato esse que dificultou ainda mais a já complicada situação dos jovens de baixa renda, que se viram de repente influenciados por essas pessoas envolvidas com o crime e, em virtude da falta de orientação por parte da família, da sociedade e do poder público, passam a ser presas fáceis para os profissionais do crime e, sem opção, iniciam sua breve caminhada para a morte.
Outro exemplo da falta de planejamento ou até mesmo de desejo de mudança por parte dos governantes é a atual situação em que vive o ‘país do futebol’, como é conhecido o nosso Brasil. Em tempos de preparação para a Copa do Mundo, assistimos de camarote a construção de grandes obras, como estádios de futebol com dimensões e tecnologias absurdas para receber com pompa principalmente o público que vem de fora e a parcela mais rica do nosso país, ou seja, aqueles que têm condições de pagar caro por um ingresso para assistir um jogo no nível de copa do mundo. O que nos falta diante desse cenário é um olhar humano e crítico para perceber que essas obras estão em desacordo com as reais necessidades dos brasileiros, em especial daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade e risco social. O que precisamos na realidade é de uma urbanização humanística que leve em consideração o direito, em especial de crianças e adolescentes, ao esporte e à arte como instrumento de desenvolvimento pessoal e social.
O que poucos sabem é que o Brasil teve oportunidade de conhecer experiências exitosas de projetos de urbanização que possibilitaram o desenvolvimento de comunidades vulneráveis e qualidade de vida para os seus moradores, como é o caso da Cidade Colombiana Medellín, mas não colocou em prática. Motivada pelo desejo e necessidade de reverter a imagem de uma das cidades mais violentas do mundo nos anos 80 do século XX, algumas atitudes foram tomadas pelo poder público de Medellín, dentre elas projetos de urbanização das áreas mais pobres da cidade. Contudo, o diferencial na cidade de Medellín está no fato da política não se restringir a um conjunto de obras faraônicas, como está acontecendo atualmente no Brasil, mas de projetos que visam a prestação de serviços com excelência e capazes de atrair a comunidade para as atividades que são oferecidas. É nesse sentido que o Brasil perdeu a oportunidade de criar paralelamente com a construção dos grandes estádios de futebol um centro de convivência onde as pessoas de baixa renda poderiam exercer seus direito ao esporte, arte e lazer que é comprovadamente pedagógico e preventivo. Essa é uma questão que precisa ser repensada para que o país alcance não apenas títulos no futebol, mas na vida de cada cidadão brasileiro.
“O raciocínio é simples. País que investe em educação, não precisa de tanto presídio. Porém, país que trata a educação e seus educadores sem prioridade, apenas no discurso e não na prática (como por aqui, nossos governantes são especialistas em fazer), aumenta a violência, caminha para a desigualdade social e escancara as portas para a injustiça social”. Mesmo com pensamentos como esse do jurista Luiz Flávio Gomes, infelizmente tudo continua como antes: o Brasil continuará erguendo cadeias, quando deveríamos estar construindo salas de aula e espaços apropriados para o esporte, a cultura e o lazer. Temos cada vez mais presos e cada vez menos pessoas que se preparam para um futuro menos desigual.
Vidas vulneráveis
Ainda segundo informações do Instituto Avante Brasil, o País conseguiu diminuir o número de mortes de recém-nascidos e prolongar a vida até a primeira infância, graças inclusive a alguns programas, conduzidos assertivamente pelo Terceiro Setor. Em especial, quero destacar o relevante trabalho da Pastoral da Terra, oportunidade em que não poderíamos deixar de fazer uma menção honrosa à saudosa e amada Zilda Arns. Tanto esforço empreendido para garantir a vida na primeira infância e, em um momento seguinte, perder para a violência das drogas e do crime organizado. Isso é lamentável.
Estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a situação da adolescência brasileira em 2011, revelam que a taxa de adolescentes e jovens entre 15 e 29 anos assassinados a cada 100 mil habitantes, em 2009, foi de 43,2%, o que representa a morte de 19 adolescentes e jovens por dia. No Brasil, nossas meninas também são as maiores vítimas dos crimes sexuais. De acordo com dados da Secretaria dos Direitos Humanos/Disque Denúncia, elas representam 80% das vítimas de exploração sexual, 74% das vítimas de tráfico de crianças e adolescentes, 79% das vítimas de abuso sexual e 73% das vítimas de pornografia. Pelas estatísticas, comprova-se a alta vulnerabilidade das nossas crianças e adolescentes em várias modalidades de delitos.
Você entendeu o que vem sendo feito na prática às nossas crianças e adolescentes de baixa renda? Diante da gravidade das estatísticas cabalmente provadas, há um verdadeiro massacre da população infanto-juvenil em virtude da ausência do Poder Público, que deveria criar Políticas Públicas direcionadas a essas famílias, capacitando-as para exercer com responsabilidade o “Pátrio Poder” e Políticas Públicas de motivação às famílias e às escolas sobre as vantagens em fortalecer o elo imprescindível entre ambas. Além disso, promover um amplo e exaustivo debate com a sociedade civil a fim de conscientizá-la de que a postura do preconceito e da indiferença aos menos favorecidos só tem causado o destrutivo “Efeito Bumerangue”, onde todos perdem.
Tem o Brasil autoridade para falar em acolhimento e inclusão de crianças e adolescentes em confronto com a Lei? É ou não um paradoxo esperar que o índice da criminalidade praticada por adolescentes seja reduzido sem que haja o investimento adequado, uma obrigação do Poder Público?
Informe-se. Participe! Uma sociedade organizada e informada é capaz de promover mais rápido as mudanças essenciais para a preservação da vida em sociedade. A união é a força adequada para combater com êxito a violência contra nossas crianças e adolescentes, o que venho denominando de “O Holocausto Brasileiro”.
* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinquência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org