domingo, 19 de maio de 2013

Cartão Recomeço - será mesmo possível ?





* Conceição Cinti.

O denominado ‘Cartão Recomeço’, lançado pelo Governo de São Paulo no último dia 09 de maio com o intuito de proporcionar a continuidade ao processo de recuperação do dependente químico após o período de estabilização já divide opiniões e, de fato, ensejará muitos questionamentos por parte de pessoas que são conhecedoras da área de tratamento e recuperação de dependentes químicos. A criação do ‘Cartão Recomeço’ pode até ser uma tentativa de reduzir o alarmante número de pessoas que perdem sua dignidade, liberdade e até mesmo a própria vida em virtude do uso de drogas, contudo, a proposta não contempla uma parcela importantíssima da sociedade: as crianças e os adolescentes. 
Por que excluir meninos e meninas que infelizmente estão iniciando cada vez mais cedo o uso de drogas e se tornam dependentes? Sem dúvida, essa exclusão desrespeita o artigo 227 da Constituição Federal, o qual afirma que o direito à proteção integral de crianças, adolescentes e jovens abrange programas de prevenção e atendimento especializado àqueles que são dependentes de entorpecentes e drogas afins. Com certeza o público alvo do programa precisa ser repensado urgentemente, mas levando sempre em consideração que intervir no campo da dependência química na infância e adolescência demanda olhar interdisciplinar e atuação conjunta e que somente uma visão ampla permite compreender esses meninos e meninas para além das questões legais e jurídicas, alcançando-os em suas vulnerabilidades individuais, familiares e sociais. 
Para entender melhor o universo da dependência química de crianças e adolescentes e a grande necessidade de um tratamento adequado destinado a esse público acesse o documentário dos Salesianos em http://www.youtube.com/watch?v=JbV54TB1SBo. 
É fato que cada especialista avalia a proposta do ‘Cartão Recomeço’ de acordo com o conhecimento que detém acerca do assunto. Um especialista já se pronunciou contrário à medida e crê que o melhor investimento no momento deveria ocorrer na área de prevenção; prontamente um promotor de justiça considerou a quantia de R$ 1.350,00 por mês, destinado às entidades parceiras do Governo devidamente habilitadas no tratamento desse tipo de paciente, um custo muito alto pelo serviço que será prestado. 
É evidente que a prevenção é atitude necessária para um país sério que deseja se manter longe das tragédias ou pelo menos em patamares aceitáveis. De fato, precisamos urgentemente de políticas públicas preventivas, pois sabemos que a vulnerabilidade social é a porta de entrada para aumentar os fatores de risco, por isso, as intervenções que buscam a prevenção de qualquer tipo de violência, violação de direitos e proteção da vida são bem vindas. O Brasil não tem tradição em políticas públicas preventivas, mas precisamos colocá-las como prioridade e fazer dessa via o caminho emergencial, no entanto, não podemos deixar de lado as políticas públicas de caráter restaurativo porque seria o mesmo que consentir as milhares de mortes, principalmente de crianças e adolescentes vitimados pelas drogas, e omitir socorro a um país epidêmico pelas drogas. 
Sobre a quantia de R$ 1.350 por mês para custear a permanência do dependente por até 180 dias em comunidades terapêuticas, respeito a opinião do digno representante do Ministério Público, que não deve ter muitas informações específicas sobre a problemática da drogadição, mas é necessário explicar que o tratamento a esses pacientes implica em uma série de cuidados especiais e multidisciplinares como, por exemplo, assistência psicoemocional e até mesmo de nutrição, pois em regra, além do abalo psicoemocional eles também apresentam um déficit na saúde física que não pode ser banalizado. 
Apenas para efeito de raciocínio e compreensão, se considerarmos que R$ 45,00 é o valor cobrado a uma pessoa sadia por um dia de hospedagem em um hotel de quinta categoria onde há apenas uma cama de péssima qualidade, banho, café e pão, logo se conclui que para recuperar a vida de um enfermo que exige múltiplos cuidados demandará um maior investimento financeiro, sob pena de comprometer não apenas o êxito do tratamento, mas a saúde do recuperando de baixa renda, por ter que suprimir determinados procedimentos que são indispensáveis à recuperação apenas para não aumentar o custo do tratamento. Isso é inaceitável!
Um Estado omisso e negligente por décadas com a vida das pessoas de baixa renda, principalmente de crianças e adolescentes, permitindo que chegássemos a esse caos não pode agora sob qualquer pretexto deixar de arcar com o que for necessário para vermos essas pessoas recuperadas. Estou falando em gastos necessários e não gastos supérfluos. Estou me referindo a investimento em saúde que foi desperdiçada, perdida por décadas de ausência de políticas públicas preventivas e restaurativas. 
Continuando a análise das condições de implementação do ‘Cartão Recomeço’, é importante frisar que determinar seis meses como prazo para a recuperação de um dependente químico é no mínimo uma ingenuidade por parte dos especialistas envolvidos na criação da medida. Basta uma pequena experiência no tratamento de dependentes químicos para saber que o prazo usual adotado pelas comunidades terapêuticas para obter resultados satisfatórios é de no mínimo nove meses correntes, sem levarmos em consideração os dependentes do crack, mais vulneráveis a muitas recaídas por causa da compulsão intermitente e severa abstinência causada por esse tipo de droga.
Outra preocupação constatada diz respeito à abrangência do ‘Cartão Recomeço’. Num estado como São Paulo, pertencente à região do país com maior concentração de usuários de cocaína e crack entre os anos de 2011 e 2012 (1,4 milhão de usuários), segundo Levantamento Nacional de Álcool e Drogas feito por amostragem e divulgado pela Universidade Federal de São Paulo em setembro de 2012, escolher apenas onze municípios para implantação do programa piloto pode comprometer o ritmo de ampliação da rede de tratamento aos dependentes. O Governo fala em atendimento a 3000 dependentes e isso significa uma porcentagem muito pequena da demanda do Estado. Além disso, excluir os dependentes que perambulam pelas regiões denominadas de Cracolândia é, na minha opinião, outro erro grave porque essas são as pessoas mais necessitadas de tratamento em entidades terapêuticas, já que o atendimento oferecido usualmente é bastante duvidoso quanto a sua eficácia. 
A cada tentativa de tratamento de dependentes químicos é inevitável não analisar o contexto geral da drogadição. Dessa forma, a cada análise nos deparamos com a insistência de políticas que deixam a desejar transparência com relação ao método aplicado no atendimento dessa parcela da população. No mês passado o Ministério Público Estadual de São Paulo entrou com uma ação civil pública para evitar que dependentes oriundos da Cracolândia sejam internados em instituições destinadas a pacientes psiquiátricos com surto. Os promotores também apuram se há procedência de que pacientes da capital estejam sendo encaminhados para unidades de tratamento no interior do Estado, fato que além de diminuir a cota de vagas nas cidades menores do interior ainda compromete a recuperação do paciente, pois impede o acompanhamento de alguém da família (incluindo a família dentro do novo e amplo contexto do vínculo familiar ao qual o aparelho judicial tende cada dia mais a aceitar equiparando laços afetivos aos laços biológicos) e no caso dos dependentes que vivem nas ruas, de um colega que esteja nas mesma condições, mas demonstra interesse afetivo pela vida do outro, uma vez que há muita solidariedade entre os moradores de rua até como uma forma de sobrevivência. 
Também temos insistindo com freqüência que o fato mais importante na recuperação/ressocialização de um dependente de drogas é a garantia na seqüência do tratamento, com início, meio e fim, não apenas porque é o mais adequado ou menos oneroso aos cofres públicos, mas principalmente porque através das fases do programa é que o recuperando vai aprendendo o passo a passo para se autodisciplinar e atingir o autocontrole sobre suas emoções, sentimentos e pensamentos, disciplina que o conduzirá à libertação da dependência. E isso, salvo qualquer engano de minha parte, é o que ainda não parece bem definido por parte do Governo como já dissemos em artigo anterior. 
O certo é que até o presente momento não temos informações transparentes sobre como acontece na prática a seqüência do tratamento oferecido pelo Poder Público ao dependente químico de baixa renda. Esse fato merece uma profunda e urgente reflexão, principalmente quando o paciente é dependente de crack, cuja dependência é severa. Portanto, ao colocar em prática cada uma das políticas públicas elaboradas é preciso ter mais consciência sobre se o trabalho desempenhado corresponde ao investimento público que foi feito. Enquanto não é possível obter essa total transparência, sigamos sempre atentos e com olhar crítico e construtivo acerca de cada uma das políticas públicas destinadas a nossa sociedade e com a certeza de que precisamos deixar de ser o país do imediatismo.
Quanto à possibilidade de recomeçar, acredito que só será possível se conseguirmos contemplar a integralidade do mundo das drogas para que possamos compreender e decidir adequadamente sobre cada medida adotada como parte do todo. 
* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org e www.educacaorstaurativa.blogspot.com


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