quinta-feira, 9 de maio de 2013

Por dentro das políticas públicas de atendimento a dependentes químicos


 

* Conceição Cinti


O avanço das drogas no Brasil é um fato que ainda está longe de encontrar uma solução que nos permita atingir um patamar aceitável, já que a erradicação é uma utopia. Pelo contrário, no ritmo e da maneira como o problema vem sendo tratado em especial pelo poder público, a problemática das drogas tende a causar ainda muitos danos tanto para o indivíduo dependente, como para as famílias e toda sociedade.Isso ocorre não apenas porque se trata de um assunto complexo, polêmico, mas devido à irresponsabilidade e omissão de décadas por parte do Governo, que insiste em banalizar o caráter social, educacional, familiar, espiritual, de saúde pública e privada, e de segurança pública que está por trás do uso de drogas.
Através da mídia percebemos que apenas o Governo e alguns poucos renomados cientistas, pelo menos aqui em São Paulo, polarizam o debate em torno da temática da drogadição e das formas de resolver o problema. Enquanto isso, um segmento importantíssimo, que são as Comunidades Terapêuticas (CT), em virtude da rica experiência que detêm e principalmente pelo fato de serem precursoras de um método de atendimento exitoso, não somente no que diz respeito à dependência orgânica, mas na construção de uma nova vida, pouco ou nunca é convidado para opinar sobre o assunto.
Quem transita por essa via conhece o desconforto que ainda existe entre a maioria dos cientistas e as lideranças das comunidades terapêuticas, principalmente por causa do componente espiritual da metodologia utilizada pela CT. Entretanto, hoje, em razão do absurdo aumento da demanda de pessoas de baixa renda aguardando por tratamento, o desconforto de outrora parece sabiamente ceder espaço para um melhor entendimento entre essas duas relevantes categorias. E esse fato é sim muito relevante, porque ambos os segmentos são imprescindíveis no atendimento às pessoas com dependência química, que sabemos que aumenta todos os dias e precisa ser resolvido.Para isso é necessário um diálogo democrático entre os dois setores que operam no mesmo campo: tratamento/recuperação de pessoas dependentes químicas, sobretudo para propor a elaboração de Políticas Públicas Restaurativas e Protetivas, uma vez que o método antigo ainda em uso pelo Estado tem se mostrado inadequado. Adotar mais uma tentativa de controlar a proliferação do uso de drogas através de tratamento/recuperação de dependentes químicos é uma urgência, tendo em vista que o uso de drogas hoje é uma das maiores preocupações da Família Brasileira e a Primeira Preocupação da Família Paulista, segundo pesquisa feita pela Datafolha e divulgada recentemente no Jornal Folha de São Paulo.
Portanto, o amplo entrosamento de todos os segmentos que têm conhecimento e experiência prática sobre esse tipo de epidemia precisa ser respeitado. Sem isso teremos uma solução capenga e ainda mais demorada para se obter resultados, o que significa mais cadáveres (lembrando os renomados mestres Luiz Flávio Gomes e Rául Zaffaroni), afinal, quem de fato conhece as características do crack sabe que as consequências desse tipo de droga são velozes e devastadoras.
Alguns já têm conhecimento de que o tratamento dos dependentes químicos tem início com o acolhimento, porém muitos ainda confundem ‘recolhimento aleatório’com acolhimento, que são coisas totalmente diferentes. Acolhimento pressupõe envolvimento humanitário e afetivo, que se constitui no eficaz amparo a alguém em total estado de vulnerabilidade sem que haja desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano. Considero que o acolhimento é a fase inicial e uma das mais importantes no tratamento do dependente. Dessa fase dependerá o êxito das demais, porque é nessa etapa que surge a empatia entre o paciente e a equipe, quando todo esforço dos profissionais envolvidos deve estar voltado para cativá-lo, fato que determinará o surgimento de um ‘comando’ e a aceitação do paciente em se deixar conduzir. Contudo, isto só é possível dentro de um contexto de respeito incondicional ao paciente.
Ao mesmo tempo, o preconceito e a indiferença de muitos profissionais pelos dependentes químicos de baixa renda ‘saltam aos olhos’, o que pode prejudicar todo processo de restauração do paciente. Por isso, é imprescindível que os profissionais que acompanham dependentes químicos se livrem de seus preconceitos e busquem cada vez mais acolher, ouvir e entender para tratar os pacientes de forma adequada, contribuindo com o sucesso do tratamento. Além disso, é preciso uma mudança de olhar por parte do gestor de Programas, que deve adotar Políticas Públicas Restaurativas e Medidas Socioeducativas no sentido de agregar valor à titulação acadêmica, que por si só não será suficiente para conferir ao gestor capacidade de administrar com êxito o recuperando.
Porém, o fato mais importante na ressocialização/recuperação de um dependente de drogas é a garantia na seqüência do tratamento, com início, meio e fim, não apenas porque é o mais adequado ou menos oneroso aos cofres públicos, mas principalmente porque através das fases do programa é que o recuperando vai aprendendo o passo a passo para se autodisciplinar e atingir o autocontrole sobre suas emoções, sentimentos e pensamentos, disciplina que o conduzirá à libertação da dependência. E isso, salvo qualquer engano de minha parte, é o que ainda não parece bem definido por parte do Governo ou talvez essa falta de definição ainda esteja acontecendo devido ao grande número de dependentes, à falta de espaço físico adequado, além de pessoal capacitado e em número suficiente para atender adequadamente à demanda.
O certo é que até o presente momento não temos informações transparentes sobre como está acontecendo na prática a seqüência do tratamento oferecido pelo Poder Público ao dependente químico de baixa renda. Um exemplo disso são os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que infelizmente ainda não têm um critério de atendimento que possibilite fácil acesso ao paciente de forma a assegurar que o recuperando dê continuidade ao tratamento.

Ao analisar o atendimento prestado por esses Centros Públicos, em que o paciente é medicado e retorna para o seu convívio natural (muitas vezes saem fisicamente mais fortalecidos e vão direito para as‘bocas’ ou bares continuar a usar droga sem nenhuma garantia de que irão prosseguir em tratamento), percebe-se, portanto, que o atendimento realizado pelos CAPs não alcançam seu objetivo, e se constituem em mais um procedimento higienista de ruas que visa apenas o retorno político. Esse fato merece uma profunda e urgente reflexão, principalmente quando o paciente é dependente de crack, cuja dependência é severa. Portanto, ao colocar em prática cada uma das políticas públicas elaboradas é preciso ter mais consciência sobre se o trabalho desempenhado corresponde ao investimento público que foi feito. Voltaremos ao assunto com mais profundidade!

*Conceição Cinti. Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa. Especialista em Tratamento de Dependentes de Substancias Psicoativas e Delinquência Juvenil, com experiência de mais de três décadas. Palestrante e autora do Blog educacaorestaurativa.org  

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