*Conceição Cinti
Tenho pensado muito sobre a violência generalizada que estamos vivendo,
em especial a violência que muitos de nós deliberadamente produzimos com nossas
próprias palavras. Diz a bíblia que a língua é um dos menores membros do nosso
corpo, mas tem o poder de vida e de morte muitas vezes incalculável.
Muito se fala em homicídios praticados por armas de fogo, inclusive, de
acordo com o Atlas da Violência 2018, produzida pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) -
Mortes Matadas por Armas de Fogo revela que mais 60 mil pessoas foram
assassinadas, e que mais de 71,6% a tiros. Inaceitável esse patamar de mortes,
que no Nordeste, em 2016 registrou no
país uma taxa de 45 homicídios por 100 mil habitantes. Entretanto, muito pouco
ou nada se fala sobre os assassinatos provocados pelas palavras, que na verdade
pode ser o principal instrumento de violência entre os seres humanos.
Na verdade, com a língua afrontamos, injuriamos, caluniamos, difamamos,
insultamos e humilhamos as pessoas. Em síntese através da língua deformamos a
autoestima e ferimos almas, ou seja, sentimentos e emoções, e são esses
sentimentos feridos, que, embora invisíveis, estão sempre por trás dos crimes
mais hediondos, aqueles que ao assistir na televisão não encontramos explicação
e simplesmente condenamos seus autores. Não estou aqui defendendo autores de
crimes, muito menos de homicídios, mas provocando uma reflexão sobre o que pode
levar um ser humano a acabar com a vida do outro de forma tão cruel e, para
nós, por motivo banal.
Para mim a língua é uma das armas mais perigosas, mais que a bomba
atômica, porque com a língua injetamos no ser humano doses altas de
ressentimento (e há aqueles que preferem injetar doses homeopáticas) gestando
dentro da pessoa o ódio, que adoece e deixa a alma agonizante. Um homem com a
alma ferida e com os sonhos e a esperança destruídos é capaz de cometer
insanidades que não podemos presumir.
A esperança ou a fé pode ser considerada a mola propulsora que conduz o
ser humano rumo aos seus objetivos mais desejados. Sem esperança, não há
sonhos, os projetos se perdem, a pessoa passa a se sentir ninguém e por isso
acredita cegamente que nada tem a perder. Na verdade o peso da língua é capaz
de amputar o amor próprio, a autoestima, o orgulho de ser alguém e é nesse
contexto que o cenário fica pronto para que a tragédia aconteça.
Mas a combustão se torna imediata e seus efeitos devastadores aparecem
quando entra em cena a sutileza da indiferença. Afinal de contas já dizia o
ativista político Martin Luther King: ‘O que me assusta não são as ações e os
gritos das pessoas más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas’.
Pessoas essas que possivelmente ao longo de um determinado tempo vivenciaram e
sentiram na pelé humilhações e também foram vítimas da indiferença que um dia
vieram a protagonizar.
Depois da desgraça feita, da vida ceifada, não dá para ver nem levar em
conta o peso da subjetividade da ação que na maioria das vezes a própria vítima
desencadeou. Repito que não estou fazendo apologia a quaisquer que sejam os
motivos que levam uma pessoa a tirar a vida de outra, até porque acredito que a
vida é um dom de Deus e ninguém tem o direito de tirá-la, mas estou querendo
sim chamar a atenção para que possamos ser mais cuidadosos, respeitosos nas
nossas falas e sábios para distinguir o que deve e o que não convém falarmos
com o outro.
A forma como falamos com as pessoas e as atitudes que expressamos na
lida diária com aqueles ao nosso redor, desde os mais íntimos (nossos
familiares e amigos) até mesmo aqueles com quem temos uma relação estritamente
profissional faz toda a diferença. Há pessoas que por imaturidade ou arrogância
acham que têm o direito sobre a vida e sobre a morte das pessoas que de alguma
forma estão sob sua gestão. Engano crasso que poderá tornar essa pessoa uma
vitima de seu Eu gigante que o impede de enxergar os direitos e a
dignidade do outro.
Por traz da maioria dos assassinatos cometidos por armas de fogo ou
armas brancas está o verdadeiro motivo que faz com que seres humanos apertem o
gatilho, finquem uma arma branca sem dó ou utilizem um arsenal mais sofisticado
para ceifar a vida do outro com requintes de crueldade, como se fosses
verdadeiros animais. E o são, se considerarmos as decisões instintivas que
muitos serem humanos tomam motivados por sentimentos menores.
Segundo o poeta J. Gaiaça: “o ser humano é entre todos os seres vivos
existentes o mais fascinante, mas também o mais complexo, o mais
surpreendente”. Essa conceituação do poeta por si só já sugere cautela nas
relações com esse ser inebriante, mas ao mesmo tempo uma imprevisível criatura
que tem facetas desconhecidas por ele próprio. Refletir ainda que minimamente
sobre nossas posturas no trato diário com aqueles que tem parte do nosso DNA ou
não é preciso. Por isso, devemos sempre lembrar que as nossas atitudes diárias
por anos a fio podem determinar um destino feliz ou não para nós mesmos!
Primar pela harmonia das relações é hoje uma forma eficaz de prevenir
conflitos desnecessários e até mortes. Nada que um olhar de compaixão não possa
perceber e evitar ou transformar uma possível tragédia em benção. Se ainda não
podemos contar com a nossa sensibilidade e compaixão para com o outro que
apelemos para o conhecimento que adquirimos através da formação acadêmica que
nos faz reconhecer que o outro também tem direitos garantidos e que precisam
ser respeitados. Eu ainda considero a primeira opção mais verdadeira e eficaz
para combater a gritante violência a que assistimos todos os dias.
*Conceição Cinti - Advogada e educadora. Precursora da Educação
Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de
Dependentes de Substâncias Psicoativas e em Delinquência Juvenil.
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