sexta-feira, 26 de junho de 2015

A explosão carcerária é uma tragédia anunciada (agora mais de 600 mil presos)

 
      Por Luiz Flávio Gomes
      Prendemos mal (muita gente não violenta – 50% dos presos) e muito, quando nos comparamos com outros países (estamos com 300 presos para cada 100 mil pessoas, contra a média de 100 na Europa, por exemplo). De 2008 a 2014 os EUA diminuíram sua população carcerária em 8%, China em 9% e Rússia em 24%. Holanda e Noruega estão fechando presídios (quem cuida bem das escolas não precisa de tantos presídios). O Brasil, ao contrário, cresceu 33%. A população brasileira aumentou no período 16% (taxa de 1,1% ao ano). Em 2002 teremos 1 milhão de presos; em 2075 1 em cada 10 brasileiros estará na cadeia (neste item o filme Tropa de Elite não estava equivocado).
A criminalidade no Brasil sobe tanto quanto, no momento, as taxas de juros e a inflação. Mas nem todos os crimes justificam o encarceramento. Fazemos pouco uso das penas alternativas. Com a cabeça de guerra queremos dizimar todos os “inimigos sociais”. Dentro das cadeias e presídios brasileiros são assassinadas 67 pessoas para cada 100 mil detentos (por ano); fora dos presídios a taxa é de 29/100 mil (Ilimar Franco, O Globo 24/6/15).
Colocar alguém na universidade do crime deveria ser coisa como último remédio. Mas não é assim que raciocinamos. Gastamos de 2 a 3 mil com cada preso, mensalmente. Pior: a criminalidade não está diminuindo (ao contrário, só tem aumentado – em 1980 contávamos com 11 assassinatos para 100 mil pessoas; hoje já pulamos para 29). Relatório divulgado em 23/5/15 pelo Departamento Penitenciário Nacional informou que a população carcerária chegou a 607.731 presos em junho de 2014, ou seja, 299,7 presos para cada 100 mil habitantes.
Em 1990, o Brasil custodiava em suas prisões 90 mil presos, o que significa que desde então houve um crescimento de 575% nesse número. Em 2000 tínhamos 232.755 presos. Daí para cá o crescimento foi de 161%. O Brasil é o 4º do mundo em população prisional (atrás de EUA, China e Rússia). Se computarmos os presos domiciliares, somos o 3º do planeta (com mais de 715 mil presos).
 
Nosso desempenho educacional, em contrapartida, é ridículo, quando cotejado com o aumento da população carcerária. Em 1990, nossa média de escolaridade era de 3,8 anos (nem metade dos 7,2 anos de 2012). Nesse item não crescemos nem 100%. Tudo fica muito pior quando enfocamos a qualidade do ensino (na “Pátria Educadora”): o Brasil está entre as últimas posições no exame Pisa, prova internacional feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 62 países. No quesito leitura, a posição brasileira é a 49ª, mesmo lugar ocupado na prova de Ciências. Em matemática, o Brasil está em 53º lugar.
País que não tem significativa e contínua melhora na educação (nem quantitativa nem qualitativa) é o que manda seus jovens para o cemitério ou para a prisão. Assim é o Brasil. Que melhorou muito nos últimos 50 anos (Arretche, Marta, diretora: Trajetória das desigualdades), mas continua com números ridículos, em termos internacionais.
Dos 607 mil presos cerca de 580 mil estão no Sistema Penitenciário, 28 mil nas carceragens de delegacias e nas Secretarias de Segurança e 358 estão no Sistema Penitenciário Federal. São 376.669 vagas e um déficit de 231.062 vagas, ou seja, uma taxa de ocupação de 161% (quase duas pessoas para cada vaga). Em termos proporcionais, o Brasil – com 300 presos para cada 100 mil pessoas – é o quarto do mundo, atrás dos EUA (698 presos por 100 mil habitantes), da Rússia (468 mil presos por 100 mil habitantes) e da Tailândia (457). Quem não investe pesadamente em educação acaba gastando seus escassos recursos com prisão.
O Brasil fecha escolas para construir estabelecimentos penais. Isso tudo vai se agravar em pouco tempo (com as mudanças legislativas em curso, que vão mandar mais 30 ou 40 jovens para a prisão – muitos não violentos). Há muita gente lutando para construir um Brasil melhor. Mas também há um bocado de destruidores (o paraíso maravilhoso descoberto pelos primeiros exterminadores e extrativistas – colonialismo português – pode virar pó se esses destruidores não forem contidos a tempo).
*Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto 
 

terça-feira, 23 de junho de 2015

O palco da contradição.


 

Por Natália Macedo Sanzovo


Parabenizo a minha amiga Natália Macedo Sanzovo,  pela sua postura sempre corajosa e humanitária, diante da injustiça dos desvalidos. Ela diz que resolveu apenas um fato pontual.

Se cada pessoa se importasse mais com a injustiça dos desvalidos (pobres e destituídos de qualquer poder) com certeza teríamos menos violência no mundo.

 
Há pouco mais de um ano, 20/08/13, eu e uma amiga psicóloga, Isabel Hamud, fomos conferir a roda de diálogo que estava sendo realizada na praça da Sé, entre autoridades, população, movimentos sociais e pessoas em situação de rua. Atividade esta organizada e promovida pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania; uma iniciativa muito bonita e verdadeiramente digna de aplausos.

O objetivo desta roda de diálogo, de um modo geral, era o de dar VOZ a esta população extremamente vulnerável e, a partir de suas falas e reivindicações, pensar em políticas públicas que pudessem atender as suas necessidades.

Nossa primeira surpresa foi nos depararmos com a organização do evento; apesar de sabermos de antemão (por meio do convite) que era uma atividade promovida pela própria prefeitura, tínhamos a expectativa de que fosse uma “roda” pequena e simples, mas nos deparamos com um palco, sistema de som com microfones, inúmeras cadeiras, equipe de filmagem, toda a praça com pinturas feitas por moradores de rua, cartazes e ampla participação.

Pois bem, enquanto assistíamos atentamente o discurso do secretário de Direitos Humanos que, por sinal, trouxe uma fala (aparentemente) muito verdadeira e cheia de vontade, nos chamou a atenção uma escancarada cena de violação aos direitos humanos.

Logo atrás de nós, a uns 4 metros, mais ou menos, um Senhorzinho, também em situação de rua (frágil, cansado, perdido), que procurava entender o significado das palavras do “homem de terno” e de todo aquele palco montado, foi abordado por policiais militares.

Ele se identificou aos policiais, apresentou seu RG e, então, foi dado início a revista de seus pertences. Ele portava apenas uma pequena sacola plástica. Dentro da misteriosa sacola, os PMs (sim, eram mais de 2) “contra” aquele potencial agressor encontraram “perigosas” mantas e casacos velhos e um “ofensivo” marmitex vazio. Pronto, satisfeitos com a significativa “apreensão”? Não, não foi o bastante. Percebemos, então, uma movimentação, a sacola sendo lacrada e o Senhorzinho sendo conduzido pelos PMs até o Distrito Policial mais próximo.

Neste momento, rapidamente abandonamos a roda de diálogo (evento promovido justamente para suscitar e combater estas questões de atrocidades contra o ser humano) para acompanhar ao vivo a afronta que estava acontecendo contra aquele Senhorzinho em situação de rua (ou seja, estávamos diante de um verdadeiro palco do contraditório).

Chegando no Distrito, avistamos o Senhorzinho, que fora liberado, porém, sem a sua sacola. Ela fora apreendida, lacrada e levada para o caminhão da Subprefeitura da Sé, juntamente com tantas outras sacolas, esperanças, sonhos e pertences de outras pessoas, também em situação de rua.

E o Senhorzinho? Estava lá, ao lado do caminhão, segurando, agora, apenas o que lhe restou, um protocolo com um número de lacre na mão, demonstrando sentir-se deslocado e perdido.

Na ocasião, nos aproximamos do Senhorzinho e perguntamos (mesmo já sabendo de tudo que tinha acontecido), o que estava ocorrendo. A este momento já haviam se juntado a nós outras pessoas, estudantes e um padre, também interessados em esclarecer a situação. E então, resumidamente ele nos respondeu: “levaram minhas coisas, tudo, não tinha nada de mais, só tinha umas blusas, uns casacos”.

Na verdade ele nem imaginava a dimensão da atrocidade que tinha sofrido e a completa ilegalidade da qual estava sendo vítima. Indignadas e convictas que estávamos diante de uma situação totalmente injustificada, procuramos compreender a razão para tamanha violação (como se houvesse alguma!) e, então, nos dirigimos aos PMs que estavam presentes no local (não os responsáveis pela apreensão, pois não estavam lá) e perguntamos se eles poderiam nos explicar porque aquele Senhorzinho teve sua sacola apreendida. Qual a fundamentação?

A resposta foi simples e genérica. Disseram que os PMs responsáveis pela apreensão estavam no exercício de sua função, logo, é dever deles realizar as abordagens quando suspeitam de alguma ilegalidade e completaram: “está na lei, Sra., tanto na Constituição Federal, no parágrafo 5º do artigo 144, como no parágrafo 2º do artigo 240 do Código de Processo Penal”.

Neste momento, totalmente insatisfeitas com aquela resposta, mas sem muito tempo para discutir sobre os limites do poder de polícia; o constrangimento acarretado ao Senhorzinho e as demais ilegalidades escancaradas, perguntamos o crucial aos PMs: Mas e a sacola, porque foi lacrada e apreendida? Não havia nenhuma irregularidade com os pertences daquele Senhor, nós acompanhamos o momento que ele foi revistado, só haviam casacos, blusas, mantas e um marmitex. E, então, de maneira evasiva e esquivando-se de qualquer possibilidade de reflexão, disseram que não poderiam saber já que não estavam na abordagem; insistimos em questionar a lógica da operação e prontamente responderam: “ah, provavelmente foi por conta da feira do rolo. Esse povo aí usa tudo o que tem para fazer rolo nesta feira, trocar com outras coisas, com droga ou objeto de crime, por exemplo”.

Então é isso. Uma pessoa em situação de rua é abordada, retiram seus pertences e a “justificativa” ou a “fundamentação” para tamanha arbitrariedade e abuso de poder é a feira do rolo? Ou seja, recolho os pertences do cidadão para que ele não venha cometer, futuramente, algo ilícito, como trocar suas roupas por drogas, por exemplo? É isso mesmo.

Embora esta ação dos PMs configure (ao nosso entender) simplesmente um crime de roubo, sua conduta está “amparada” por uma norma municipal que legitima a ação dos policiais militares e todo o procedimento burocrático da prefeitura. Segundo a fala do policial: “Estamos prevenindo crimes, minha Sra.”, e completa: “quando os pertences são recolhidos e levados para o caminhão da prefeitura, o cidadão recebe um protocolo e também a orientação de comparecer à subprefeitura (correspondente ao local onde teve seus pertences recolhidos) pois, após a análise dos funcionários públicos, ou seja, depois de verificarem que realmente não há nada de irregular com os produtos apreendidos, os pertences são liberados para o cidadão”. O que torna a situação ainda mais absurda, porque se um morador tiver a possibilidade de reaver seus pertences (considerando a dificuldade e o transtorno de ter de se deslocar até a subprefeitura e a necessidade de compreender a “lógica” da retirada dos pertences e se expressar até encontrar o local de retirada), poderá revender na “feira do rolo” mais tarde e, sendo assim, em absolutamente nada foi eficaz a suposta “prevenção”, a não ser em adiar um eventual “delito” e alimentar a indignação, insatisfação e descrença por parte da população vulnerável. E pior, se o morador não for retirar seus pertences (como deve acontecer na grande maioria dos casos) terá maior dificuldade de adquirir novos pertences (pois não terá sequer o que tinha antes para trocar).

Ou seja, não se trata de uma ação isolada dos Policiais Militares, mas sim de uma determinação da Prefeitura da cidade de São Paulo, a qual legitima o crime de ROUBO contra os moradores de rua (tendo em vista a retirada dos pertences sem o consentimento desta população) com base numa portaria ou decreto municipal.

Diante deste cenário, o que nos restava, pelo menos naquele momento, era voltar ao palco do contraditório, à roda de diálogo e chamar a atenção das autoridades que lá estavam presentes para o ocorrido. E foi o que fizemos. O padre contatou discretamente autoridades responsáveis para interceder pelo caso específico para que aquele senhor pudesse reaver seus bens. Esperei a minha vez, tomei o microfone e me dirigi ao subprefeito da Sé e ao secretário dos direitos humanos da cidade de São Paulo. Antes de mais nada, educadamente, elogiei o evento, enfatizando o quão era imprescindível dar voz àquela população tão marginalizada e vulnerável. Após, narrei a cena de atrocidades contra aquele Senhorzinho, que seus pertences estavam apreendidos por uma ação conjunta da Polícia Militar e Prefeitura de São Paulo e que aquele seria o momento mais que adequado para reverter este quadro de abusos contra esta população. Neste momento, consegui ler nos lábios do Subprefeito da Sé para eu não me preocuparpois os pertences daquele Senhorzinho seriam devolvidos imediatamente para ele. E então, parei, interiorizei aquele discurso direcionado e silencioso e respondi. Pois bem, Sr. Subprefeito, a situação deste Senhorzinho será resolvida, hoje. Amanhã ele pode ser vítima novamente desta mesma ação, certo? Além disso, e os demais moradores, como ficarão? Continuarão com seus pertences sendo recolhidos arbitrariamente? Até quando? Esta ação configura crime de roubo contra esta população. Portanto, já que este é o momento adequado para questionamentos, intervenções e propostas de efetivas mudanças para esta população em situação de rua, gostaria de propor que este tipo de atrocidade tivesse um fim imediato, que esta tal de portaria/decreto municipal que eu, por sinal, desconheço completamente, fosse revogada imediatamente, sob pena desta população continuar sendo constantemente violada e desrespeitada, dada sua vulnerabilidade. Só para concluir, na sacola do Senhorzinho havia um marmitex, mantas, blusas e casacos e hoje o termômetro diz que a temperatura máxima na capital não passará dos 15ºC e a madrugada será fria. Como é que isso é possível? Agradeço muito a atenção e espero, verdadeiramente, que este pedido seja acolhido imediatamente.

Poucas palavras, muita emoção e confusão naquele momento, mas a mensagem principal foi transmitida e não poderia deixar de ser, diante do ocorrido. O que fizemos foi pouco, nós sabemos, afinal, ter os pertences recolhidos é apenas uma das inúmeras violências que esta população está sujeita. No entanto, podemos dizer que não nos calamos diante daquela injustiça e procuramos reverter ao menos a atrocidade que nossos olhares conseguiram flagrar.

Ademais, muitos moradores falaram e gritaram (com intensidade, ousadia e coragem) com determinação e desejo de serem autores de suas próprias histórias. Esta fala, apesar de vir de um lugar diferente (daquela que nunca foi subjugada nem tampouco submetida a ter que dispor de seus pertences para averiguação), ecoou com intensidade, pois falava da verdade vivida cotidianamente por muitos que aplaudiram por se identificar e se mostrarem agraciados pela oportunidade de muito mais do que apenas serem ouvidos, mas sim por serem vistos.

Pois é, o Senhorzinho recuperou sua sacola e junto com ela tudo o que talvez lhe restou desta vida, um pouco de dignidade e esperança. E nós, saímos de lá aliviadas, por um lado, ao ter sanado uma ilegalidade pontual, mas extremamente perturbadas por saber que, ao menos nos próximos dias, meses, quiçá anos, aquela realidade permanecerá, até que alguma providência de fato seja tomada.

Por isso, os próximos passos devem ser dados. Comparecer na secretaria de direitos humanos e verificar quais medidas que serão tomadas frente as falas e reivindicações apresentadas na roda de diálogo do dia 20/08/13 e, principalmente, se a decisão (portaria ou decreto) que legitima o recolhimento arbitrário dos pertences de moradores de rua foi revogada (ou, ao menos, suspensa). De modo contrário, o caminho mais plausível será entrar em contato com os movimento pró população em situação de rua e ingressar no judiciário paulista contra este recolhimento compulsório (se é que já não há nada em andamento), a exemplo do que ocorreu em Belo Horizonte. O Tribunal de Justiça mineiro acolheu o recurso elaborado pelo Coletivo Margarida Alves de assessoria popular para confirmar a liminar já concedida e proibir que os agentes públicos municipais (Fiscalização e Guarda) e estaduais (Polícia Militar) recolham compulsoriamente os pertences pessoais da população em situação de rua, sob pena de execução da multa prevista no acórdão e responsabilização dos agentes públicos envolvidos (clique aqui, para mais detalhes sobre a decisão).

O dia 11 de julho de 2013, então, passou a ser uma data histórica para a população em situação de rua de Belo Horizonte, já que a decisão determinou que a Prefeitura de Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais cessassem as violações de Direitos Humanos desta população.

E, por aqui? Quando será o momento histórico que a capital mais “rica” do país (São Paulo, 1º lugar no ranking do IBGE/2010) dará um basta a este tipo de atrocidade contra a população em situação de rua? Enquanto a resposta é obscura, a luta será certa. Mobilizaremos interessados, nos juntaremos aos movimentos que apoiam a causa, não descansaremos e nem deixaremos que a roda de diálogo tão representativa e autêntica configure um mero e convencional “blá blá blá”.

Natália Macedo Sanzovo é Mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada (OAB/SP 290.884). Coordenadora-adjunta do Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade (GDUCC), atividade de extensão universitária da FDUSP. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos Avançados de Escolas Penais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Coordenadora adjunta do Grupo de Estudos avançados sobre as Modernas Tendências do Delito, coordenado pelo Professor Dr. Alexis de Couto Brito, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Monitora bolsista do Estágio Supervisionado em Docência, do Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) da FDUSP.