sábado, 20 de julho de 2013

Dor versos Abstinência

* Conceição Cinti

“Se a nossa meta é crescer, aprender e descobrir coisas acerca de nós mesmos e de Deus, então, infelizmente, uma vida de facilidades não será provavelmente o meio de conseguir isso. Eu sei que eu tenho aprendido muito pouco sobre mim ou Deus quando tudo está indo bem”
(Francis Collins, líder do projeto Genoma Humano)




                                            Fonte: Internet

O tratamento médico e psicológico dos usuários de drogas é bastante complexo e envolve diversas facetas que estão diretamente relacionadas com o tipo de droga usada e o grau de dependência. A desintoxicação, que pode ser realizada por meio da suspensão de qualquer substância que cause dependência, seja ilícita ou lícita (incluindo-se o tabaco), é polêmica e o método considerado radical por alguns especialistas. Entretanto, a maioria das comunidades terapêuticas opta pela retirada radical de toda e qualquer substância que cause dependência.
Contudo, é importante registrar que as comunidades terapêuticas não se utilizam apenas da ciência elas usam o método misto: ciência e espiritualidade. E na operacionalização da desintoxicação, priorizam o resgate espiritual como uma alternativa de recuperar. Eu sou adepta da retirada radical, desde que o paciente não seja dependente de derivados do ópio.
No organismo do usuário de drogas, acostumado à porção diária de substâncias psicoativas, é possível que, na fase inicial da desintoxicação, se instale a síndrome de abstinência, para os dependentes de álcool, e a psicose tóxica, para dependentes de outras drogas, cujos sintomas podem ser leves ou severos, dependendo do estado físico e do grau de comprometimento da dependência.
Na síndrome de abstinência podem ocorrer sintomas físicos, que causam mal estar, podendo ser traduzidos por meio de tremores, transpiração excessiva, insônia, náuseas, vômitos, aceleração dos batimentos cardíacos, queda na pressão arterial, dores abdominais etc. Pode haver ainda alucinações, ansiedade e até convulsões, bem como um quadro de ansiedade, muito medo e sensação de estar sendo perseguido.
É um sofrimento real, e esse sofrimento pode ser tão intenso e esmagador que necessita ser administrado com eficiência e compaixão pela equipe multidisciplinar. Embora de ordem psicológica, esse sofrimento jamais poderá ser banalizado. No caso do dependente em tratamento, a abstinência é provocada pela retirada da droga com a deliberação da equipe multidisciplinar, com o acordo dos pais ou familiares do recuperando e, às vezes, quando possível, com a anuência do mesmo.
Para isso, competentes profissionais, sejam em clínicas, comunidades terapêuticas ou outros espaços, optam e trabalham com competência no gerenciamento da redução de danos. Nesses casos, é permitido ao dependente ingerir porção balanceada da substância que necessita, de acordo com cada caso e a cargo da equipe responsável.
Em minha opinião, os dependentes com severo comprometimento pelos derivados do ópio, a exemplo da morfina e da heroína, necessitam dessa ingestão até que seu organismo volte a produzir novamente endorfinas. Fora esses, nos demais casos, a minha experiência particular através de décadas trabalhando como gestora da Equipe Multidisciplinar de Programas de Restauração de Dependentes de Substâncias Psicoativas, afirmo que os registros de síndrome de abstinência foram mais frequentes que os da psicose tóxica.
Em um processo de recuperação de dependentes de droga é fundamental a qualidade da preparação prévia do recuperando, visando criar um ambiente de total confiabilidade entre ele e a equipe, possibilitando encorajá-lo a lutar e acreditar em sua capacidade de reverter a angustiante situação.
No trabalho visando elevar sua autoestima ou de cercá-lo de todos os cuidados necessários, ter como integrante da equipe multidisciplinar um monitor ex-dependente faz toda a diferença na condução e na minimização da dor desse paciente, que está muito fragilizado, carente e extremamente vulnerável. A presença de um monitor com esse perfil é importantíssima não apenas para facilitar a comunicação entre ambos, tendo em vista as especificidades da linguagem própria dos usuários de drogas, cujos sentimentos são externados muito mais com gestos do que com palavras, mas também facilitar e permitir que as intervenções da equipe sejam mais precisas. Temos que admitir que por mais competente que seja uma equipe multidisciplinar ela não tem a experiência de alguém que viveu o drama de ser um dependente de drogas.

Após muitos anos na luta diária pela restauração de vidas, convenci-me de que os sentimentos e o olhar enigmático de um dependente falam com intensa transparência, mas só podem ser devidamente decodificados por meio da lupa generosa do olhar de alguém com experiência própria, como um ex-dependente restaurado e vocacionado para trabalhar com aqueles que como ele, um dia, não tinha nenhuma perspectiva de retomar a própria vida, enfrentou as mesmas mazelas e vivenciou o horror da perversidade do mundo das drogas.
Desde que o mundo é mundo, o homem procura evitar o sofrimento; o que é possível por um tempo, nunca o tempo todo. Por exemplo, ao longo da nossa trajetória de vida para crescermos, amadurecermos e conquistarmos nossos sonhos temos que enfrentar muitas adversidades ou até mesmo passar por experiências doloridas, mesmo que o mundo moderno tenha um arsenal de práticas para evitar a dor. Atualmente, somos ensinados desde criança a combater a dor, mesmo que ela não seja física, ingerindo remédios, e por isso muitos de nós temos grande probabilidade de nos tornarmos dependentes.
Entretanto, como seres humanos, é impossível evitarmos por completo a dor, principalmente a psicológica, decorrente dos mais variados sentimentos. Dificilmente somos ou estamos preparados para ouvir um não ou para enfrentar as perdas e então nos tornamos ainda mais frágeis diante dessa inevitável realidade a que estamos sujeitos ao longo da vida. O cientista Francis Collins, líder do projeto Genoma Humano, em entrevista divulgada pelo site da revista National Geographic, destaca o quanto é fundamental que o ser humano passe por momentos dolorosos para crescer enquanto pessoa. “Antes de tudo, se a nossa meta é crescer, aprender e descobrir coisas acerca de nós mesmos e de Deus, então, infelizmente, uma vida de facilidades não será provavelmente o meio de conseguir isso. Eu sei que eu tenho aprendido muito pouco sobre mim ou Deus quando tudo está indo bem”. A declaração de Collins nos faz perceber que potencializar a dor e transformá-la em uma conversa íntima consigo mesmo e com Deus pode ser uma fonte de descobertas e aprendizado, além de ser altamente terapêutico.
Sou adepta da overdose de afeto, generosidade, compaixão, oração e música, da imprescindível graça, sem abrir mão do bom humor e de menos drogas lícitas ou ilícitas para ajudar o recuperando a superar suas dores e perdas. Esses ingredientes têm se mostrado poderosíssimos na elevação da autoestima, da autodeterminação do recuperando, ajudando-o a superar a dor com menos sofrimento.
A recompensa é a liberdade, infinitamente superior à dor das perdas, dos hábitos e costumes durante o processo de restauração. Afinal, tudo que um dependente tem são drogas: drogas de hábitos, drogas de costumes e as drogas propriamente ditas. Nessa transposição, que podemos denominar até da fase de insanidade para a sobriedade, o dependente percorre um caminho dolorido, mas altamente recompensador porque deságua no autodomínio, no autocontrole e no encontro com Deus e consigo mesmo. A libertação e a restauração de pessoas é possível!
* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência demais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Colunistas de alguns sites renomados. Autora do www.educacaorestaurativa.org


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