domingo, 9 de junho de 2013

Redução da Maioridade Penal – um retrocesso na conquista de direito


                                                     Fonte: Internet


* Conceição Cinti.


“Se não vejo na criança uma criança é porque alguém a violentou antes. E o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado”.
Herbert de Souza (Sociólogo).
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque aceitar que meninos e meninas sejam penalizados cada vez mais cedo é fazer o que fazem as pessoas descompromissadas com o direito à vida do próximo: atacam a conseqüência mesmo sabendo que a solução é combater a causa do problema. Por que não cuidar da criança e do adolescente antes para que ele não se torne uma pessoa em conflito com a lei?
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque a adolescência é a fase de transição da infância para a vida adulta, momento que exige investimento da família, do Estado e da sociedade e nós sabemos que, com a derrocada da família, o recrudescimento do Estado e o preconceito da sociedade com os adolescentes em conflito com a lei não têm conseguido ultrapassar esses severos obstáculos.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque creio na força transformadora que há na educação, como instrumento de cidadania, justiça e humanização. Por convicção própria e como resultado da experiência de anos trabalhando nessa área, acredito que nenhum tipo de cadeia pode superar a educação e contribuir para a reintegração de um adolescente em conflito com a lei na sociedade.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque sabemos estar estatisticamente comprovado que os adolescentes em conflito com a lei são, em sua maioria, negros, pardos, de baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, além daqueles em situação de miséria. Pessoas que foram expostas, desde a mais tenra idade, a todo tipo de violência e que nunca tiveram seus direitos mais elementares garantidos, o que por si só já os torna potenciais vítimas do Estado e da sociedade.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque acredito no potencial da criança e do adolescente quando ele é orientado e incluído como ator do seu próprio projeto de vida, quando lhe dão oportunidade de participar em pé de igualdade com os demais como protagonista de sua história com respeito e dignidade a seu momento de maior fragilidade, que é o momento em que ele inicia sua própria construção e desenvolvimento psicoemocional, social e físico.
Sou radicalmente contra a redução da Maioridade Penal porque me recuso a repetir esse discurso de uma sociedade revanchista e preconceituosa, corroborada pela mídia populista que prossegue levianamente fomentadora da violência que tem vitimado meninos e meninas em confronto com a lei e contribuído para a formação de uma consciência social perversa ancorada unicamente na repressão, como se o sistema prisional fosse a solução de uma problemática social tão complexa.
Impunidade?
Aos que questionam sobre uma possível sensação de impunidade quando se trata de atos praticados por adolescentes, devemos alertar que o artigo 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já prevê medidas socioeducativas para menores de 18 anos que praticam atos infracionais (crimes ou contravenções penais).
Assim, um adolescente com 12 anos de idade, ainda em fase de desenvolvimento psicológico, emocional e intelectual, pode passar por todo processo pelo qual um adulto passar ao cometer um crime, ou seja, esse adolescente será internado (preso), processado, sancionado (condenado) e, se for o caso, cumprir a medida (pena) em estabelecimentos educacionais, que são verdadeiros presídios.
É imprescindível ressaltar que todas as medidas previstas no artigo 112 do ECA (internação em estabelecimento educacional, a inserção em regime de semiliberdade, a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade) são iguais às sanções previstas no Código penal e atribuída aos adultos. Dessa forma, a prisão é igual à internação do adolescente; o regime semi-aberto é semelhante à inserção do adolescente em regime de semiliberdade; a prisão albergue ou domiciliar se parece com a liberdade assistida prevista no ECA; e a prestação de serviços à comunidade é idêntica para os adolescentes em conflito com a lei.
Não podemos, no entanto, desconsiderar que ao criar o Estatuto da Criança e do Adolescente houve uma tentativa de tratar esses meninos e essas meninas em conflito com a lei de forma diferenciada do adulto que praticou crime, reconhecendo nele um sujeito de direitos em fase de desenvolvimento e que merece ser tratado com prioridade absoluta. O problema está exatamente na forma como essas medidas socioeducativas estão sendo aplicadas, pois na prática elas se tornam verdadeiras penas ineficazes e inúteis para a ressocialização do adolescente.
Logo, o mais importante no momento não é reduzir a maioridade penal e sim fazer com que o ECA seja efetivamente cumprido pelos gestores das unidades de medidas socioeducativas, espaço destinado na teoria à ressocialização dos adolescentes. Nesse sentido, se faz necessário que as medidas socioeducativas sejam rediscutidas, aperfeiçoadas e cumpridas de modo a evitar um efeito contrário à recuperação: meninos e meninas mais corrompidos por um sistema pseudo socioeducativo.
Acredito que sustentar a redução da maioridade penal é abrir mais uma brecha para permitir decisões subjetivas e com isso colocar em risco a vida dos adolescentes pobres e negros, que nesse país são prisionáveis, torturáveis e mortáveis (conforme bem ilustra o jurista Luiz Flavio Gomes).
A violência por parte dos adolescentes existe, mas ela sempre esteve aquém da violência praticada contra esses meninos e meninas colocados em instituições que na realidade não recuperam nem ressocializam. Não podemos simplesmente colocá-los em centros que são verdadeiras cadeias, que transformam os jovens em bandidos muito mais perigosos. Segundo dados do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinqüente (ILANUD), os atos infracionais realizados por adolescentes não chegam a responder nem por 10% dos crimes praticados no Brasil. Além disso, de todos os atos infracionais praticados por adolescentes, somente 8% podem ser interpretados como crimes contra a vida. A grande maioria dos atos infracionais (cerca de 75%) é contra o patrimônio, sendo que 50% são furtos. Dessa maneira é um grande engano argumentar a favor da redução da idade penal como estratégia para acabar com a criminalidade.
Ora, não podemos generalizar para efeito de endurecimento das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes em conflito com a lei tomando como base os extremos, como os psicopatas ou sociopatas; ou casos isolados que ganham grande repercussão, como os casos do menino João Hélio, assassinado por um adolescente em 2007. Isso seria um contrassenso, um grande equívoco. Casos isolados não devem de forma alguma nortear as medidas socioeducativas. Medidas adotadas em meio à comoção popular podem resultar em injustiças que poderiam macular ainda mais a imagem do Brasil como um país que não assiste a população infanto-juvenil, ou seja, não cuida do futuro da nação, e mais do que isso, permite que meninos e meninas sejam torturados e mortos.
Violência
Não podemos colocar a culpa da criminalidade nos adolescentes, pois eles são vítimas de uma sociedade que não leva em conta a dignidade da pessoa humana. É necessário mais responsabilidade por parte dos gestores públicos com políticas de proteção à infância e à adolescência, e de alcance à família. É preciso que a família, a comunidade, a sociedade em geral e o Poder Público assegurem proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e que possibilitem à família condições de direcionar seus filhos rumo à cultura da paz.
Enganam-se os que pensam que é a inimputabilidade dos adolescentes que os atrai para o cometimento de atos infracionais. É a falta de oportunidades, de expectativas para um futuro melhor que os leva para este caminho. Somente por meio de políticas públicas inclusivas que abranjam saúde e educação, bem como um policiamento responsável e comunitário, será possível avançar na construção de uma sociedade justa e solidária.
Maioria favorável
Há sim uma maioria favorável à redução da maioridade penal. São geralmente pessoas que se deixam influenciar pela mídia populista e criticam duramente o adolescente em confronto com a lei. Defendem não apenas medidas mais duras, mas há até aqueles que se solidarizam com o modelo americano, vigente em alguns poucos estados daquele país, que insanamente prevê prisão perpétua sem direito à progressão de regime para essa categoria de meninos e meninas, o que seria o mesmo que admitirmos a tese lombrosiana que não encontrou ancoragem nem na ciência nem no direito penal pátrio.
Aceitar esse fato seria um contrassenso, seria banalizar e reduzir uma questão de tamanha complexidade a situações que na verdade são mais consequência do descaso do Poder Público com a criança e o adolescente e que têm provocado o que venho denominando de “O Holocausto Brasileiro”, uma verdade que há décadas vem vitimando meninos e meninas e que precisa ser contido, pois nunca será superado através de duras penas.
Ademais, não podemos deixar de mencionar que a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, contraria o artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, que estabelece que não pode ser alterado (já que é cláusula pétrea), além de desrespeitar o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. Segundo esse tratado, os adolescentes devem ser processados separadamente dos adultos. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado tem o dever de assegurar proteção integral a Criança e ao Adolescente.
Portanto, reduzir a maioridade penal seria o mesmo que jogar precocemente os adolescentes em conflito com a lei na “Universidade do Crime”, uma vez que é do conhecimento público a deterioração do sistema penal brasileiro. Na verdade, o que deve nortear esse debate acerca dos adolescentes em conflito com a lei é uma maneira mais justa de promover os direitos de todos os brasileiros em formação, independente de sua condição socioeconômica e étnico-cultural.

* Advogada e educadora. Precursora da Educação Restaurativa, com experiência de mais de três décadas em Tratamento de Dependentes de Substâncias Psicoativas e Delinqüência Juvenil. Palestrante e colunistas de alguns sites renomados. Autora dowww.educacaorestaurativa.org


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