sábado, 8 de junho de 2013

De como fabricamos psicanaliticamente os menores delinquentes






Luiz Flávio Gomes
De como fabricamos psicanaliticamente os menores delinquentes



Juan Pablo Mollo (psicanalista e autor do livro “Psicoanalisis y Criminología”), tradução de Débora de Almeida e notas entre colchetes de Luiz Flávio Gomes

Em razão da ímpar oportunidade (tendo em vista que o legislador brasileiro está discutindo a questão da maioridade penal), vale a pena conhecer um trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, que estamos traduzindo (e que queremos publicar ainda este ano no Brasil). Segue o texto do autor citado:
O desamparo se transforma em crime por meio do sistema penal. 
Quando as crianças fogem de seu lar e ficam nas ruas, começam um caminho difícil, sem rumo fixo, em situação de desproteção, suportando grandes privações. Como forma de defesa e subsistência, os meninos de rua organizam-se precariamente entre si, e tentam dispor de um mínimo apoio afetivo mediante a identificação comum que oferece o grupo. É evidente que os meninos de rua são altamente vulneráveis e, por isto, são uma “oportunidade” e um negócio para organizações criminais que lucram com a prostituição infantil, o tráfico de órgãos ou a exploração sexual e de trabalho dos menores etc.
 Sem uma pessoa adulta ou um “pai” que responda por eles, o grupo infantil perambula à deriva e tenta subsistir por meios lícitos e ilícitos, segundo o que encontrarem à disposição dia após dia. A mesma vulnerabilidade dos meninos torna explicável o roubo simples de carteiras, bicicletas ou celulares, que despois vendem para obter um dinheiro mínimo, gratificante em curto prazo. Com o tempo, se não são detidos e enviados a um reformatório, a associação de meninos de rua pode ser dirigida por organizações criminais dedicadas ao tráfico de drogas e outras mercadorias, ou realizar tarefas ilegais para a polícia.
 Esta breve descrição do caminho infantil à deriva é uma representação do fenômeno a partir do ponto de vista econômico-social; no entanto, existe outra lógica subjacente aos atos delitivos das crianças e adolescentes, que alcança uma dimensão afetiva: a fuga infantil intempestiva para a rua está relacionada com “ter sido deixado fora” (abandonado) por sua família de origem. Daí sua persistência em não voltar ao lar, ainda que em situações de desamparo extremo. A fuga da criança para a rua implica que “algo” insuportável lhe acontece em sua casa, e, por isto, o escape toma uma forma de precipitação, urgência subjetiva e sem referências, em direção à hostilidade de um mundo sem regras.
 Verifica-se na clínica psicanalítica que a fuga infantil é uma resposta subjetiva da criança ante uma diversidade de circunstâncias tais como a marca da rejeição, não se sentir querido, ser ferido ou explorado afetivamente, não resistir à violência ou aos conflitos familiares já intoleráveis, a morte de algum de seus pais, tios, irmãos, avós ou maior responsável etc. Assim, uma fuga desesperada, que mais é uma queda ou uma derrubada simbólica, joga-o a uma situação de desamparo e angústia pela perda de um apoio afetivo.
 O desamparo real nasce com a perda de um lugar no desejo do Outro, que não é um conceito abstrato, senão a certeza de “ser” algo para alguém concreto, neste caso um familiar ou um responsável pela criança. Em outras palavras, ter um lugar no desejo do Outro, encarnado em alguma das figuras familiares, supõe que a criança ou o adolescente é alojado, levado em consideração e sustentado, para além das palavras e das razões. Inversamente, sendo a rua o lugar dos que não têm lugar, a fuga infantil mostra bem a queda do desejo do Outro [daí a sensação de isolamento, de não pertencência].
 Por definição, ser deixado cair fora (ser abandonado) do desejo do Outro produz angústia, perda de recursos simbólicos e ações intempestivas. Logo, o salto ao vazio da rua devido à perda de um lugar não conceitual, mas real, lhe acrescenta outro desamparo mais tangível no plano social. Com efeito, a angústia pela perda de “alguém” que respondia por ele, visivelmente o deixa sem referências simbólicas e literalmente à deriva, fora das obrigações de horários e demais convenções sociais.
 Da angústia ao sistema penal
 Entretanto, não se trata da influência do ambiente físico ou social da família do menino, senão da ruptura de um “ambiente afetivo”, como causa do perambular da criança ou do jovem. Aqui, o desamparo não é social e não se trata da exclusão econômica e geográfica do marginal, mas da rejeição original e a queda subjetiva que sofre uma criança ou um jovem, para além de sua classe social.
 O abandono produz angústia e esta se transforma em ações intempestivas e inadequadas em relação às convenções sociais. Na verdade, a transformação da angústia em atos, já supõe estar fora da proteção das normas simbólicas; e por isto, tais atos inadequados constituem um chamado ao lugar perdido no desejo do Outro. As condutas antissociais de um menino de rua se dirigem a um Outro para que este responda por ele. Ou ainda, o comportamento antissocial constitui uma “chamada de atenção” porque, justamente, se perdeu a atenção de um Outro familiar.
 A partir desta perspectiva, as ações delitivas e associais do jovem delinquente constituem um modo de “golpear” as instituições sociais, suas normas e sua moral, com a finalidade consciente ou não, de ser incluído na legalidade perdida. Portanto, resulta primordial ingressar numa realidade “afetiva”, pacificadora da angústia, como condição de uma possível adaptação à legalidade social. Em outras palavras, o abandono inicial deixa o jovem como um objeto fora da lei, e por isto, seus atos delitivos esperam uma resposta do Outro para constituir-se como sujeito de uma lei. Quando não há resposta, a situação se agrava e se intensificam as atuações, incluindo-se o risco da própria vida.
 Não obstante, verifica-se na clínica psicanalítica que a certeza de ter “um lugar no desejo do Outro”, nestes casos, produz uma inclusão afetiva e social, cujo efeito é a recuperação da referência à norma. Por isso, tais atuações, que constituem uma série repetitiva de acting out, não configuram uma patologia, mas uma “zona de relação” vinculada ao desejo do Outro (Lacan). A angústia transformada em acting out, constitui uma etiologia delitiva sutil, cuja fenomenologia é ir à deriva, sem recursos simbólicos, porém em direção a entrar no cenário do mundo regrado e convencional.
 Precisamente, no início de 1900, averiguando o campo teórico clínico da criança e do adolescente, os primeiros psicanalistas já se opunham às teorias etiológicas constitucionalistas que influenciavam a criminologia da época, e rechaçavam a homologia do delinquente com as categorias psiquiátricas de psicopatas, inferiores ou perversos. Para os psicanalistas pioneiros na matéria, um ato delitivo ou uma conduta antissocial não constituía um diagnóstico, não valia por si mesma (Eissler), mas se distinguia da mera impulsividade (Blos) e respondia ao abandono (Aicchorn).
 Também, teorizavam que os conflitos que operavam na origem da tendência antissocial sobrevinham das separações prematuras e prolongadas (Bowlby), ou da carência da criança em relação a sua mãe (Winnicott). Em suma, as investigações psicanalíticas em torno da delinquência, as quais se desenvolveram no desamparo social das guerras mundiais, mantêm, hoje, toda sua vigência ante a situação de milhões de crianças e jovens que são forçados a sobreviver na rua. Os filhos da marginalização social da América Latina são os mesmos órfãos do pós-guerra europeu: jovens deixados cair fora (abandonados), que depois desencadeiam séries intermináveis de delitos e distúrbios, mostrando o objeto de descarte que são para o Outro.
 Assim, a delinquência juvenil é a materialização da angústia. As ações da criança ou jovem de rua, logicamente, terão que resultar inadequadas ou delitivas, pois sua direção inconsciente é convocar ao Outro. E precisamente, verifica-se clinicamente que os atos delitivos cedem quando a criança ou adolescente angustiado é alojado genuinamente no desejo do Outro. A delinquência juvenil é transitória e depende de uma resposta do Outro. Por exemplo, o caso de um jovem irmão que está na rua, não vai à escola, rouba, usa droga etc., e quando um tio distante, de maneira autêntica, o convidou a trabalhar numa quitanda e se encarregou dele, de pronto, o jovem respondeu plenamente, mudando rapidamente seu modo de vida anterior. O jovem retomou o colégio e deixou de roubar e se drogar, isto é, recuperou a legalidade a partir de ter a certeza de “ser” alguém para Outro.
 Mesmo expressado com extrema simplicidade, o exemplo deixa vislumbrar uma “cura” para o delinquente juvenil. Com efeito, se vindo do desamparo e do abandono primário, as transgressões à lei são tentativas angustiosas de buscar um Outro para ter onde se alojar, para além de todas as razões; então, se se oferece uma resposta adequada, uma terapêutica é possível para o ordenamento do delinquente juvenil. Sempre será uma resposta que permita a inclusão, ainda que não possa ser padronizada nem institucionalizada, pois necessita do desejo do Outro em singular; ou seja, requer do desejo singular de encarregar-se ou não, de quem, neste caso está à deriva.
 Alojar alguém no desejo do Outro não é uma operação conceitual, mas um efeito enigmático que compromete profundamente duas pessoas em nível de seus desejos. Tampouco é o significado de uma frase ou o valor das palavras, senão um efeito análogo ao súbito enamoramento. Por isso, em sentido estrito, a resposta “terapêutica” não é calculável, senão que está definida pelos efeitos concretos e reais de um “encontro” afetivo, que diminuiu a urgência e a patologia da conduta.
 Outras vezes, a marca do abandono original retorna e o jovem volta à rua e para uma tendência antissocial cada vez mais marcada. A situação de angústia se agrava com o passar do tempo e, às vezes, ao desamparado de anos, só lhe resta um lugar miserável no cárcere ou no hospital psiquiátrico, ou então suicidar-se. Tais são os extremos a que chegam as séries repetitivas de acting out, quando não há alguém que responda ao chamado.
 Indubitavelmente, nem todos os delinquentes são desamparados que atuam sem referências simbólicas. No entanto, a grande maioria dos delinquentes incluídos na subcultura criminal antes foi um jovem à deriva. Portanto, existe uma passagem do desamparo e angústia para a fixação da identidade delitiva ou criminosa. Desta forma, se a angústia se oculta atrás dos atos delitivos e sua dosificação pode produzir repentinamente uma mudança de posicionamento em relação às normas, então, a subcultura delitiva também é uma solução para a angústia.
 A passagem do desamparo ao clube criminoso constitui uma via de socialização com um aprendizado técnico e discursivo, cuja “graduação” realiza-se no cárcere, que define hierarquias. A tendência antissocial do jovem origina-se numa exclusão causal de sua família, por ter sido deixado cair fora do desejo do Outro (abandonado pelo Outro). E a subcultura subterrânea, própria da prisão, lhe oferece uma bússola para sua deriva angustiosa.
 Na subcultura criminosa são os ideais delitivos os que ordenam as ações delitivas que, neste caso, não chamam ao Outro, nem se produzem por uma transformação da angústia. O ideal delitivo é o rumo e a referência simbólica necessária para “ser” um delinquente e superar a angústia e a culpabilidade.
 Em outras palavras, o jovem que age a partir da angústia não pode se situar a partir de um ideal de referência; e inversamente, ao oferecer uma identidade, um horizonte e uma tradição, os códigos delitivos são formas simbólicas de ordenamento da delinquência. E a afiliação à subcultura e o início em uma carreira delitiva ou criminosa frequentemente se faz de duas formas, que conduzem à mesma fixação de uma identidade: o sistema penal e a criminalidade organizada. O cárcere e a máfia criminosa são dois dispositivos de transformação do abandono em identidade delitiva, que oferecem um “ser” no mundo, ali onde se “era” um resto abandonado para o desejo do Outro.
 Apesar de suas funções aparentes, o sistema penal é um eficaz aparato de reprodução da tradição criminosa. Logicamente, o acting out delitivo cessa quando o sujeito volta às normas e às identificações, para além de seu significado moral.
 Não obstante, a afiliação ao ideal delitivo não é repentina, mas sim um processo subjetivo ordenado por um grupo a que pertence. A identificação vai se assumindo paulatinamente até que se impõe, com valor de “ser” reconhecido pela comunidade delitiva ou criminosa. A busca de prestígio e a paixão pelo reconhecimento constituem uma referência ao Outro da subcultura criminosa; e, neste caso, o jovem à deriva deixa de agir por angústia e começa a atuar numa carreira criminosa que lhe traça um destino. Assim, o sistema penal soluciona a angústia do jovem abandonado, oferecendo-lhe a cultura da ilegalidade e do crime [é desta forma que nossa sociedade psicanaliticamente falando fabrica os menores delinquentes; Nietzsche quando fala da mais perigosa desaprendizagem sublinha: “Começa-se por desaprender a amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais digno de amor em si mesmo” (Aurora)].


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