Luiz Flávio Gomes
Juan Pablo Mollo (psicanalista e autor
do livro “Psicoanalisis y Criminología”), tradução de Débora de Almeida e notas
entre colchetes de Luiz Flávio Gomes
Em razão da ímpar oportunidade (tendo
em vista que o legislador brasileiro está discutindo a questão da maioridade
penal), vale a pena conhecer um trecho do livro O delinquente que não
existe, de Juan Pablo Mollo, que estamos traduzindo (e que queremos
publicar ainda este ano no Brasil). Segue o texto do autor citado:
O desamparo se transforma em crime por
meio do sistema penal.
Quando as crianças fogem de seu lar e
ficam nas ruas, começam um caminho difícil, sem rumo fixo, em situação de desproteção,
suportando grandes privações. Como forma de defesa e subsistência, os meninos
de rua organizam-se precariamente entre si, e tentam dispor de um mínimo apoio
afetivo mediante a identificação comum que oferece o grupo. É evidente que os
meninos de rua são altamente vulneráveis e, por isto, são uma “oportunidade” e
um negócio para organizações criminais que lucram com a prostituição infantil,
o tráfico de órgãos ou a exploração sexual e de trabalho dos menores etc.
Sem uma pessoa adulta ou um “pai”
que responda por eles, o grupo infantil perambula à deriva e tenta subsistir
por meios lícitos e ilícitos, segundo o que encontrarem à disposição dia após
dia. A mesma vulnerabilidade dos meninos torna explicável o roubo simples de
carteiras, bicicletas ou celulares, que despois vendem para obter um dinheiro
mínimo, gratificante em curto prazo. Com o tempo, se não são detidos e enviados
a um reformatório, a associação de meninos de rua pode ser dirigida por
organizações criminais dedicadas ao tráfico de drogas e outras mercadorias, ou
realizar tarefas ilegais para a polícia.
Esta breve descrição do caminho
infantil à deriva é uma representação do fenômeno a partir do ponto de vista
econômico-social; no entanto, existe outra lógica subjacente aos atos delitivos
das crianças e adolescentes, que alcança uma dimensão afetiva: a fuga infantil
intempestiva para a rua está relacionada com “ter sido deixado fora”
(abandonado) por sua família de origem. Daí sua persistência em não voltar ao
lar, ainda que em situações de desamparo extremo. A fuga da criança para a rua
implica que “algo” insuportável lhe acontece em sua casa, e, por isto, o escape
toma uma forma de precipitação, urgência subjetiva e sem referências, em
direção à hostilidade de um mundo sem regras.
Verifica-se na clínica
psicanalítica que a fuga infantil é uma resposta subjetiva da criança ante uma
diversidade de circunstâncias tais como a marca da rejeição, não se sentir
querido, ser ferido ou explorado afetivamente, não resistir à violência ou aos conflitos
familiares já intoleráveis, a morte de algum de seus pais, tios, irmãos, avós
ou maior responsável etc. Assim, uma fuga desesperada, que mais é uma queda ou
uma derrubada simbólica, joga-o a uma situação de desamparo e angústia pela
perda de um apoio afetivo.
O desamparo real nasce com a
perda de um lugar no desejo do Outro, que não é um conceito abstrato, senão a
certeza de “ser” algo para alguém concreto, neste caso um familiar ou um
responsável pela criança. Em outras palavras, ter um lugar no desejo do Outro,
encarnado em alguma das figuras familiares, supõe que a criança ou o
adolescente é alojado, levado em consideração e sustentado, para além das
palavras e das razões. Inversamente, sendo a rua o lugar dos que não têm lugar,
a fuga infantil mostra bem a queda do desejo do Outro [daí a sensação de
isolamento, de não pertencência].
Por definição, ser deixado cair
fora (ser abandonado) do desejo do Outro produz angústia, perda de recursos
simbólicos e ações intempestivas. Logo, o salto ao vazio da rua devido à perda
de um lugar não conceitual, mas real, lhe acrescenta outro desamparo mais
tangível no plano social. Com efeito, a angústia pela perda de “alguém” que
respondia por ele, visivelmente o deixa sem referências simbólicas e
literalmente à deriva, fora das obrigações de horários e demais convenções
sociais.
Da angústia ao sistema penal
Entretanto, não se trata da
influência do ambiente físico ou social da família do menino, senão da ruptura
de um “ambiente afetivo”, como causa do perambular da criança ou do jovem.
Aqui, o desamparo não é social e não se trata da exclusão econômica e
geográfica do marginal, mas da rejeição original e a queda subjetiva que sofre
uma criança ou um jovem, para além de sua classe social.
O abandono produz angústia e esta
se transforma em ações intempestivas e inadequadas em relação às convenções
sociais. Na verdade, a transformação da angústia em atos, já supõe estar fora
da proteção das normas simbólicas; e por isto, tais atos inadequados constituem
um chamado ao lugar perdido no desejo do Outro. As condutas antissociais de um
menino de rua se dirigem a um Outro para que este responda por ele. Ou ainda, o
comportamento antissocial constitui uma “chamada de atenção” porque,
justamente, se perdeu a atenção de um Outro familiar.
A partir desta perspectiva, as
ações delitivas e associais do jovem delinquente constituem um modo de
“golpear” as instituições sociais, suas normas e sua moral, com a finalidade
consciente ou não, de ser incluído na legalidade perdida. Portanto, resulta
primordial ingressar numa realidade “afetiva”, pacificadora da angústia, como
condição de uma possível adaptação à legalidade social. Em outras palavras, o
abandono inicial deixa o jovem como um objeto fora da lei, e por isto, seus
atos delitivos esperam uma resposta do Outro para constituir-se como sujeito de
uma lei. Quando não há resposta, a situação se agrava e se intensificam as
atuações, incluindo-se o risco da própria vida.
Não obstante, verifica-se na
clínica psicanalítica que a certeza de ter “um lugar no desejo do Outro”,
nestes casos, produz uma inclusão afetiva e social, cujo efeito é a recuperação
da referência à norma. Por isso, tais atuações, que constituem uma série
repetitiva de acting out, não configuram uma patologia, mas uma “zona
de relação” vinculada ao desejo do Outro (Lacan). A angústia transformada em acting
out, constitui uma etiologia delitiva sutil, cuja fenomenologia é ir à
deriva, sem recursos simbólicos, porém em direção a entrar no cenário do mundo
regrado e convencional.
Precisamente, no início de 1900,
averiguando o campo teórico clínico da criança e do adolescente, os primeiros
psicanalistas já se opunham às teorias etiológicas constitucionalistas que
influenciavam a criminologia da época, e rechaçavam a homologia do delinquente
com as categorias psiquiátricas de psicopatas, inferiores ou perversos. Para os
psicanalistas pioneiros na matéria, um ato delitivo ou uma conduta antissocial
não constituía um diagnóstico, não valia por si mesma (Eissler), mas se distinguia
da mera impulsividade (Blos) e respondia ao abandono (Aicchorn).
Também, teorizavam que os
conflitos que operavam na origem da tendência antissocial sobrevinham das
separações prematuras e prolongadas (Bowlby), ou da carência da criança em
relação a sua mãe (Winnicott). Em suma, as investigações psicanalíticas em
torno da delinquência, as quais se desenvolveram no desamparo social das
guerras mundiais, mantêm, hoje, toda sua vigência ante a situação de milhões de
crianças e jovens que são forçados a sobreviver na rua. Os filhos da
marginalização social da América Latina são os mesmos órfãos do pós-guerra
europeu: jovens deixados cair fora (abandonados), que depois desencadeiam
séries intermináveis de delitos e distúrbios, mostrando o objeto de descarte que
são para o Outro.
Assim, a delinquência juvenil é a
materialização da angústia. As ações da criança ou jovem de rua, logicamente,
terão que resultar inadequadas ou delitivas, pois sua direção inconsciente é
convocar ao Outro. E precisamente, verifica-se clinicamente que os atos
delitivos cedem quando a criança ou adolescente angustiado é alojado
genuinamente no desejo do Outro. A delinquência juvenil é transitória e depende
de uma resposta do Outro. Por exemplo, o caso de um jovem irmão que está na rua,
não vai à escola, rouba, usa droga etc., e quando um tio distante, de maneira
autêntica, o convidou a trabalhar numa quitanda e se encarregou dele, de
pronto, o jovem respondeu plenamente, mudando rapidamente seu modo de vida
anterior. O jovem retomou o colégio e deixou de roubar e se drogar, isto é,
recuperou a legalidade a partir de ter a certeza de “ser” alguém para Outro.
Mesmo expressado com extrema
simplicidade, o exemplo deixa vislumbrar uma “cura” para o delinquente juvenil.
Com efeito, se vindo do desamparo e do abandono primário, as transgressões à
lei são tentativas angustiosas de buscar um Outro para ter onde se alojar, para
além de todas as razões; então, se se oferece uma resposta adequada, uma
terapêutica é possível para o ordenamento do delinquente juvenil. Sempre será
uma resposta que permita a inclusão, ainda que não possa ser padronizada nem
institucionalizada, pois necessita do desejo do Outro em singular; ou seja,
requer do desejo singular de encarregar-se ou não, de quem, neste caso está à
deriva.
Alojar alguém no desejo do Outro
não é uma operação conceitual, mas um efeito enigmático que compromete
profundamente duas pessoas em nível de seus desejos. Tampouco é o significado
de uma frase ou o valor das palavras, senão um efeito análogo ao súbito enamoramento.
Por isso, em sentido estrito, a resposta “terapêutica” não é calculável, senão
que está definida pelos efeitos concretos e reais de um “encontro” afetivo, que
diminuiu a urgência e a patologia da conduta.
Outras vezes, a marca do abandono
original retorna e o jovem volta à rua e para uma tendência antissocial cada
vez mais marcada. A situação de angústia se agrava com o passar do tempo e, às
vezes, ao desamparado de anos, só lhe resta um lugar miserável no cárcere ou no
hospital psiquiátrico, ou então suicidar-se. Tais são os extremos a que chegam
as séries repetitivas de acting out, quando não há alguém que
responda ao chamado.
Indubitavelmente, nem todos os
delinquentes são desamparados que atuam sem referências simbólicas. No entanto,
a grande maioria dos delinquentes incluídos na subcultura criminal antes foi um
jovem à deriva. Portanto, existe uma passagem do desamparo e angústia para a
fixação da identidade delitiva ou criminosa. Desta forma, se a angústia se
oculta atrás dos atos delitivos e sua dosificação pode produzir repentinamente
uma mudança de posicionamento em relação às normas, então, a subcultura
delitiva também é uma solução para a angústia.
A passagem do desamparo ao clube
criminoso constitui uma via de socialização com um aprendizado técnico e
discursivo, cuja “graduação” realiza-se no cárcere, que define hierarquias. A
tendência antissocial do jovem origina-se numa exclusão causal de sua família,
por ter sido deixado cair fora do desejo do Outro (abandonado pelo Outro). E a
subcultura subterrânea, própria da prisão, lhe oferece uma bússola para sua
deriva angustiosa.
Na subcultura criminosa são os
ideais delitivos os que ordenam as ações delitivas que, neste caso, não chamam
ao Outro, nem se produzem por uma transformação da angústia. O ideal delitivo é
o rumo e a referência simbólica necessária para “ser” um delinquente e superar
a angústia e a culpabilidade.
Em outras palavras, o jovem que
age a partir da angústia não pode se situar a partir de um ideal de referência;
e inversamente, ao oferecer uma identidade, um horizonte e uma tradição, os
códigos delitivos são formas simbólicas de ordenamento da delinquência. E a
afiliação à subcultura e o início em uma carreira delitiva ou criminosa
frequentemente se faz de duas formas, que conduzem à mesma fixação de uma
identidade: o sistema penal e a criminalidade organizada. O cárcere e a máfia
criminosa são dois dispositivos de transformação do abandono em identidade
delitiva, que oferecem um “ser” no mundo, ali onde se “era” um resto abandonado
para o desejo do Outro.
Apesar de suas funções aparentes,
o sistema penal é um eficaz aparato de reprodução da tradição criminosa.
Logicamente, o acting out delitivo cessa quando o sujeito
volta às normas e às identificações, para além de seu significado moral.
Não obstante, a afiliação ao
ideal delitivo não é repentina, mas sim um processo subjetivo ordenado por um
grupo a que pertence. A identificação vai se assumindo paulatinamente até que
se impõe, com valor de “ser” reconhecido pela comunidade delitiva ou criminosa.
A busca de prestígio e a paixão pelo reconhecimento constituem uma referência
ao Outro da subcultura criminosa; e, neste caso, o jovem à deriva deixa de agir
por angústia e começa a atuar numa carreira criminosa que lhe traça um destino.
Assim, o sistema penal soluciona a angústia do jovem abandonado, oferecendo-lhe
a cultura da ilegalidade e do crime [é desta forma que nossa sociedade
psicanaliticamente falando fabrica os menores delinquentes; Nietzsche quando
fala da mais perigosa desaprendizagem sublinha: “Começa-se por desaprender a
amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais digno de amor em si
mesmo” (Aurora)].
Nenhum comentário:
Postar um comentário